PROCURAM-SE PESSOAS NORMAIS NOS ROMANCES

É recorrente nos livros mais vendidos que o romance narrado retrate um homem muito rico e uma mulher ingênua. A partir desse envolvimento, a trama desenvolve seus inconvenientes próprios de uma narrativa interessante, mas defendo que esses obstáculos poderiam ser superados se as personagens se tratassem com mais amor, tivessem mais maturidade e buscassem simplicidade.

Em Orgulho e Preconceito, Mr. Darcy, com 27 anos, é um herdeiro, possivelmente porque a família emprestou dinheiro para as Guerras Napoleônicas e agora recebem anualmente os juros da Coroa Britânica à razão de 5 mil libras por ano. Já Mr. Bingley, 10 mil libras, enquanto Mr. Bennet, apenas 2 mil, o que põe em termos claros que a futura noiva de Mr. Darcy é da nobreza decadente.

Em Crepúsculo, Edward Cullen, de 18 anos, é filho de um médico e, em análises fora dos livros, o psiquiatra foi considerado o personagem mais rico da ficção em 2010 pela revista Forbes, com uma fortuna calculada em US$34,5 bilhões. Já Isabella é filha de pais separados e está passando uma temporada com o pai policial após o novo casamento da mãe.

Em 50 Tons de Cinza, Christian Grey, de 27 anos, é fundador de uma empresa bilionária e fez isso sem herança alguma, tudo fruto do próprio mérito (contém ironia), enquanto Anastasia é uma estudante de literatura, trabalha numa loja de ferragens e, no lugar da colega de quarto, vai fazer uma entrevista de emprego na mega corporação de Christian. 

Em É Assim Que Acaba, Ryle Kincaid (sem idade definida) é um neurocirurgião que mora numa cobertura em Toronto e Lily está começando um negócio próprio.

Todos esses homens são ricos ou extremamente ricos, pessoas que provavelmente não fazem parte do nosso círculo social nem jamais falarão conosco. Mas eles encontram uma bela e simples donzela para se apaixonar. É sério? É a mesma fórmula da Disney de fazer filmes na versão 18+.

Onde estariam as pessoas normais nos romances mais vendidos? E se a gente tirasse a fortuna deles, o que sobraria?



Mr. Darcy tratou com desdém uma mulher que, veja só, seria seu grande amor. Edward precisa matar sua namorada para transformá-la em vampiro. Christian Grey só sentia prazer agredindo fisicamente uma mulher, que descartava de tempos em tempos. Ryle Kincaid poderia ser extremamente gentil ou extremamente violento em poucos segundos. 

Já as mulheres desses romances sofrem críticas ou são críticas a si mesmas por motivos banais: Elizabeth Bennet, de 20 anos, com sua astúcia é considerada impertinente. Bella Swan quer ser transformada em vampiro imediatamente, aos 19 anos, pois não quer parecer mais velha que Edward (de 18!). Anastasia Steele, de 22 anos, é virgem (e sua primeira experiência sexual já é carregada de violência e não consentimento). Lily Bloom, de 23 anos, é a mais íntegra das quatro personagens, exceto por ter crescido em meio à violência doméstica.

É certo que para se criar uma narrativa interessante é preciso dar aos personagens características que geram curiosidade. Mas por que os homens parecem ser sempre ricos e as mulheres inseguras e imaturas demais?

Antes de responder a essa pergunta, vamos a alguns conceitos. Romance é um gênero literário cuja narrativa é mais longa, desenvolve seu enredo através de seus personagens, num período de tempo e espaço específico. Difere das novelas, que possuem menos personagens, e difere dos contos, que são focados em cenas impactantes. 

O romance não precisa ser romântico, pode ser  histórico, naturalista, modernista, realista, indigenista etc., mas que mal tem em acompanhar as histórias de amor dentro deles? A questão é: não me parecem histórias de amor.


Por falar nisso, o que é amor?


Para definir, vamos ao livro Tudo Sobre o Amor de bell hooks. No capítulo 1, intitulado “Clareza: pôr o amor em palavras”, a doutora em língua inglesa tenta conceituar o amor, e usa a definição do psiquiatra M. Scoot Peck:

[Amor é] “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa. (…) O amor é o que o amor faz. Amar é um ato da vontade – isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica em escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. (p. 47)

E bell complementa:

“A afeição é apenas um dos ingredientes do amor. Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários ingredientes – cuidado, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta. Aprender definições falhas de amor quando somos bem jovens torna difícil sermos amorosos quando amadurecemos”. (p. 47)


Percebam que amor é promover crescimento pessoal tanto em mim quanto na outra pessoa que amo. Quando amo, isso me faz bem e faz bem ao outro. Não precisa ser recíproco, mas deve gerar uma boa sensação em ambas as pessoas ao mesmo tempo. 

A partir desse conceito conseguimos diferenciar relacionamentos que se dizem amorosos daqueles que realmente são. Explico: se aquilo que se diz amor dá medo, causa instabilidade emocional, te obriga a fazer o que não quer, provavelmente não é amor. 

Embora seja difícil avaliar com clareza quando se está imerso numa relação, é preciso contar com a maturidade emocional para discernir entre amor e desamor. No entanto, nossas personagens femininas dos romances são jovens e inexperientes, por isso ficam sujeitas aos abusos perpetrados por esses protagonistas opulentos. Que saída teriam elas?

No capítulo 7, intitulado “Ganância: simplesmente ame”, bell discute como num mundo consumista o amor é substituído por coisas materiais e traça um panorama das últimas décadas para chegarmos aos relacionamentos na contemporaneidade:


“[Em meados dos anos 1950, nos Estados Unidos] a taxa de divórcios era o principal indicador de que o casamento não era mais um abrigo seguro. E o crescente conhecimento público de que a violência doméstica e todas as formas de abuso infantil eram disseminadas revelava claramente que a família patriarcal não era capaz de oferecer refúgio.

Confrontadas com um universo emocional com o qual era aparentemente impossível lidar, algumas pessoas adotaram uma nova ética protestante do trabalho, convencidas de que o sucesso da vida seria mensurado pela quantidade de dinheiro que se ganhava e pelos bens que se podia comprar com esse dinheiro. A boa vida não era mais encontrada na comunidade e na conexão, mas na acumulação e na satisfação do desejo hedonista e materialista. Seguindo essa mudança de valores, de uma sociedade orientada para as pessoas para uma sociedade orientada para as coisas, os ricos e os famosos, especialmente as estrelas de cinema e os músicos, começaram a ser vistos como os únicos ícones culturais relevantes”.  (p. 142)


Embora a tendência social passe a se voltar para o consumo, o gênero feminino sempre esteve um passo atrás nas conquistas materiais, assim, seja por necessidade ou deleite, mulheres mantiveram relacionamentos disfuncionais (sem amor) para que esse status também se mantivesse. 

Ciente disso, quando me deparo com um relacionamento ficcional com um personagem muito rico, já me dispara um alerta vermelho: o que será que esse endinheirado vai aprontar?

Outro fator levantado por bell é de que, num mundo patriarcal, os homens não se esforçam tanto quanto as mulheres para prática do amor:

“Muitas pessoas querem que o amor funcione como uma droga, dando-lhes um êxtase imediato e prolongado. Elas não querem fazer nada, apenas receber passivamente uma sensação boa. Na cultura patriarcal, os homens são especialmente inclinados a ver o amor como algo que deveriam receber sem esforço. Frequentemente, eles não querem fazer o trabalho que o amor demanda. Quando a prática do amor nos convida a entrar num espaço de felicidade potencial, que é ao mesmo tempo um espaço de despertar crítico e dor, muitos de nós viramos as costas para o amor”. (p. 148)

E mais um elemento para a fragilidade dos relacionamentos é que a falta de compreensão do que é amor leva jovens a descartarem relacionamentos quando eles não lhes proporcionam tudo o que desejam (ignorando os altos e baixos da vida):

“O cinismo em relação ao amor leva jovens adultos a acreditar que não há amor a ser encontrado e que os relacionamentos são necessários apenas na medida em que satisfazem desejos. (...) Relacionamentos são tratados como copos descartáveis. São todos iguais. São dispensáveis. Se um não funciona, deixe para lá, jogue fora, arrume outro. (...) E amizades ou comunidades amorosas não podem ser valorizadas e mantidas”. (p. 149)





Nesses termos, podemos afirmar que os relacionamentos dos romances citados, pelo menos em seus inícios, não eram de amor: as mulheres tinham suas escolhas minimizadas, mas permaneciam ali, vivendo momentos estonteantes que o dinheiro proporciona e que, apesar disso, ainda não supriam a falta de amor. Bell hooks sintetiza: “Se o dinheiro realmente compensasse a perda e o desamor, os ricos seriam as pessoas mais felizes do planeta”. (p. 153)

Bell hooks sugere que vivamos com mais simplicidade, que não sejamos super-ricos nem procuremos sê-los. Por isso, não me interessam os grandíssimos galãs dos livros top de vendas. É maior a chance de uma pessoa encontrar um amor manso e sereno em alguém que não se parece um personagem principal desses romances. E a chance de não ser vítima de um relacionamento problemático, também. 

Por isso, concordo com a conclusão de bell hooks no capítulo da ganância:

“Quando valorizamos o adiamento da recompensa e assumimos responsabilidade por nossas ações, simplificamos nosso universo emocional. Viver com simplicidade faz com que amar seja simples. A escolha por viver com simplicidade necessariamente intensifica a nossa capacidade de amar. É como aprendemos a praticar a compaixão, afirmando todos os dias nossa conexão com uma comunidade mundial.” (pg. 159)


Lília Alfino

para o Clube do Livro

Sinop/MT, 08/2024

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