TEXTOS DE 2020

Em retrospecto, foi um ano difícil por conta do isolamento exigido pela pandemia. 


Eu e Marcelo não viajamos, passeamos, ou fizemos academia. O trabalho era em casa, não falávamos com ninguém. Eu comecei a estudar para concurso. Ele ainda não jogava RPG na internet, então ficou mais sozinho do que nunca.


Quanto aos meus avós, receberam poucas visitas, era só eu e minha mãe aos sábados e domingos quentes e muxoxos por lá. 


Sofia estava começando a fugir de casa sem que soubéssemos.


Um perfeito coquetel de melancolia.





Sinop/MT, 28.01.2020

Administração



A vida adulta jovem envolve a administração de interesses de quem está a nossa volta. Eu tenho três avós, um relacionamento, uma mãe e uma irmã.

Os avós precisam de visitas constantes. Vó Rosa e Vô Catonho que tem a cabeça boa precisam de atenção para não se sentirem sozinhos. Já Vó Valéria sinto que tenho de visitar para demonstrar solidariedade e interesse para tia Mayra e Bal. Vó Valéria já se foi há muito.

Minha mãe depende emocionalmente de mim. Queria muito que ela fizesse terapia.

Já quanto à minha irmã sou eu mesma quem precisa dela. Não quero que ela se esqueça da minha companhia. Não quero que ela tenha cáries também, por isso a levo a dentista.

Além disso gosto de ir à piscina quando tem sol, o que “bate” com os horários que meus avós maternos preferem ser visitados. 

Gosto também de sair a noite, quando é o melhor horário para visitar Vó Valéria.

Preciso ir ao mercado, mas não me atrevo a usar as manhãs, que são melhores para estudar.

Tem também a limpeza da casa, que é melhor no fim de semana, mas fica ruim quando eu quero ir a academia e fazer as unhas.

Contrato alguém para limpar a casa? Descontrato a manicure que aumentará o preço esse ano e cada vez mais machuca minhas cutículas?

Não são essas questões que minha psico escuta. Por incrível que pareça essas eu consigo resolver sozinha.


PS: Vó Valéria está na UTI desde ontem com problema pulmonar. A médica preferiu interná-la por causa do histórico de bronco-aspiração.




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Sinop/MT, 30.01.2020

UTI


Vó Rosa foi para UTI há dois anos. Voltou com ótimas histórias como a do ladrão que levou uns tiros e não se comunicava em nada mais do que um som molhado de língua. Essa avó sempre teve medo de UTI, assim como da Santa Casa de São Paulo: “a UTI é um caminho sem volta” e “na Santa Casa dão o chá da meia noite”. Assim, quando ela voltou beníssima da UTI, desfiz também aquela imagem mental determinista.


Dessa vez foi Vó Valéria quem foi para UTI. Antes da visita minha tia me alertou: “você já foi numa UTI? Vovó está entubada”. Quando cheguei, não achei tão mais ruim de como ela já estava. Mas o rosto me pareceu inchado, tia Mayra me mostrou inícios de escaras, uma pele com aparência de assada, esfarelenta. “Em casa eu passava um ‘olinho’ (óleo)”, disse ela. Os tubos machucavam o palato dela, havia sangue seco.


Olhei seus pés, que na última internação estavam furados de soro, a mão já estava roxinha demais. Dessa vez, estavam embalados numa botinha de ataduras, como um sapatinho de frio. Vó Rosa também precisou numa de suas noites de UTI, a artrose não é nada acostumada com ar condicionado.


Ontem meu pai, descaradamente se expressou mal no facebook e anunciou a morte dela. Eu julgo, mas não é tão diferente da sensação que tenho.



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Sinop/MT,18.03.2020.

Cenário ideal



Se é a rotina com meus avós que cansa minha mãe, mais do que fornece bons momentos, num cenário ideal, eles estariam mortos. Da mesma forma, quando eu visito vó Valéria acamada e não responsiva tenho a sensação de fardo desnecessário, significa que num cenário ideal, ela também estaria morta.


Mas um bom cenário, também, seria se todos eles estivessem como há dez anos, ou melhor, vinte. Todos compravam as próprias roupas, faziam o próprio mercado. Vó Rosa e Vô Catonho iam às quintas-feiras ao Clube dos Idosos, Vó Valéria não se importava em vir de São Paulo de ônibus.


Quando se é mais novo, o cenário ideal de emprego, família, experiências referem-se ao futuro, mas quando se é idoso, o melhor momento já se foi. Esse equilíbrio, portanto, parece ser perto da meia idade, mas que, pasme, é também um período que li ser de intensa crise existencial. Vide minha mãe (54 anos e 12 dias).




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Sinop/MT, 28/04/2020

Testamento vital em construção




Pensei em escrever meu testamento vital, Living will. Diante dos tratamentos que minha vó Valéria recebe, penso no que não quero para mim. Conteria vedação a alimentação e respiração artificial.

Mas eu esperava precisar disso quando ficasse idosa ou depois de um acidente muito grave.

Não esperava que a pandemia de Covid-19 me forçasse a pensar nisso. Hoje se eu precisar respirar por aparelhos e receber alimentação por sonda nasogástrica é obvio que não rejeitaria.

Tem a ver com a minha função cognitiva não estar afastada.

Ora! Então não é preciso consultar meu testamento.




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Sinop/MT, 02/05/2020

Das coisas que você tem de abrir mão ao cuidar de um idoso


O seu tempo para coisas pessoais será reduzido, se você não se policiar, se organizar, pode até ser anulado de forma irrecuperável, não sem parecer um egoísta. 

Seu salário pode ser destinado a algumas necessidades do idoso. Vó Valéria trocou o tipo de curativo das escaras, talvez não esteja contido no orçamento da homecare. 

Você pode precisar adaptar um quarto exclusivo para o idoso. Comprar um ar-condicionado, cama hospitalar, cadeira para a cuidadora. Por outro lado, pode usar os mesmos quadrinhos e imagens religiosas antigas. 

Você vai ter de fazer uma porta ou aumentar a porta antiga. Dedicar o banheiro da piscina às necessidades da cuidadora da vez. Reativar a geladeira com a porta quebrada deixada de lado para ela guardar suas refeições. 

E por último: talvez você precise se desfazer do cachorro louco.

Ela era jovem e estabanada demais. Carente, pululante. Não era suficiente que lhe fossem cortadas as unhas: com seu peso poderia derrubar alguém pequeno. E mesmo sem derrubar ou arranhar, poderia assustar os novos funcionários da casa.

Eles poderiam reclamar na empresa, dizer que não aguentavam esse tipo de coisa. "Mas essa cuidadora era tão boa, gostava da mamãe", seria como você se lamentaria.

Antes do arrependimento, doaram a Maia.

Quem sabe meu pai a adotou. Ou melhor: ela poderia ter ido para um sítio onde cavalos reduziriam o fogo dela. 

Mesmo louca, meus tios gostavam da Maia, deve ter sido uma dura decisão, uma das muitas que nos fazem abrir mão da vida pessoal para cuidar de um idoso.


OBS: meu pai ficou com a Maia, que é filha da Starli.




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Sinop/MT, 12/06/2020 

Dia dos namorados e um dilema de relacionamento


Quinto* dia dos namorados e me dei conta uma séria incompatibilidade de ideias no meu relacionamento. Meu namorado é adepto à política de tolerância zero, e eu, simpatizo com o abolicionismo. 


Para reduzir a violência ele diz que uma ou duas gerações de penas mais altas e de amplo encarceramento criará no imaginário popular a ideia de que certas condutas não devem ser cometidas.


Eu penso que todos que estão presos sabem exatamente o tamanho da violência que cometeram e o único meio de salvá-los seria por meio da educação. Mas também acho custoso demais voltar recursos da educação para esse público, então sugiro ignorar essa geração e pensar nas próximas. Dessa forma, em uma ou duas gerações teríamos pessoas que não se interessariam por cometer certas condutas.


Em ambos os modelos ignoramos a geração existente. 


Pelo menos somos igualmente utilitaristas. Ufa, uma razão para continuarmos.


Love you! ♥


*Na verdade era o sexto dia dos namorados juntos




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Sinop/MT, 12/06/2020

Férias em segregação compulsória


Essa manhã acordei depois de sonhar que eu estava de volta na escola e durante a aula de matemática 02 tínhamos que fazer nosso próprio cálculo de pena. Eu estava num internato/prisão e falei durante a aula que meu prazo era dezembro – devo ter associado ao meu aniversário – e fui aplaudida pelos colegas. Logo minha alegria virou inveja e curiosidade porque um colega mais bagunceiro sairia em outubro. Que de mais grave eu havia feito?


Marquei férias para dia 01/07, achando que voltaríamos ao núcleo dia 15/06, por isso eu estaria lá quando voltássemos ao atendimento presencial pós pandemia. Quem sabe esse prazo seja dilatado e eu possa ajudar a organizar as pessoas quando voltarmos ao atendimento presencial que, presumo, será loucurinha.


Mas eu precisava de férias, e não posso adiar mais. Tanto pelo término do período de gozo em 23/07, como porque eu as precisava desde abril, preferencialmente em Punta Cana, mas as fronteiras fecharam.


Fronteiras fechadas não fazem mais parte só dos livros de distopia que leio, mas da minha realidade. A Europa fechou a fronteira para viajantes brasileiros por tempo indeterminado: quem foi, foi, quem não foi, não vai mais. Enquanto formos personas non gratas por lá restam os hermanos. Sugiro a Argentina pela arquitetura, museus e empanadas. Sugiro o Chile pela história de ditadura tocante, e pelos conflitos em tempo real onde os guanacos e pacos violadores atiram balas de borracha no rosto e cegam a pessoas, tal qual estão fazendo nos protestos americanos pela morte do George Floyd. 


Outra coisa que eu achava que só veria nos livros seriam as doenças de “segregação compulsória”. Nome importante para lepra, mas autorizado para a COVID-19.


Que farei nas minhas férias? Estarei em segregação compulsória, com prazo para voltar à rotina, não muito diferente do meu sonho da alvorada.






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Sinop/MT, 13/06/2020

Sofia arranjou um a namorado aos 12 anos


Mais um sábado que minha mãe veio apenas jogar seus descontentamentos em mim.

Fazia muito tempo desde o último, que pelo que me lembro, tinha a ver com a dissolução dos bens da união estável com meu pai e mandei minha mãe consultar um advogado porque eu não sabia daquele assunto e não queria me envolver.

Dessa vez teve a ver com a Sofia. Essa menina de 12 anos e 10 meses mandou fotos beijando e abraçando um rapazinho e disse que o estava namorando.

Pedi que minha mãe mandasse ela passar aqui. Eu falaria com ela. Eu estava imaginando falar como se apresenta um namorado para a família, e já que ela sabia que não seria aceito, o fez da pior maneira possível – quer dizer, de uma maneira ruim, sei que poderia ter piores.

Depois de uma hora minha mãe mandou mensagem dizendo que a Sofia não poderia vir, que passaria o fim de semana com o pai.

O mesmo que lhe deu um celular, pode ser que agora sugira tomá-lo. Melhor que nem tivesse entregue. Agora ele vai aparecer para reclamar da criação tida até agora e ostentar que colocou-a nos eixos.

Mais uma vez que fui colocada numa situação para ouvir, mas não ser ouvida.

Minha mãe passou a noite se lembrando as ocasiões em que se preocupou dessa forma com os filhos mais velhos: Felipe aos 15, talvez arranjou uma namorada na escola. Minha mãe teve medo de que a menina engravidasse. Eu com 17 fui ao carnaval e numa das noites voltei às três da tarde da casa de uma amiga e não pude avisar porque meu celular ficou sem bateria e eu estava dormindo até aquele horário. Ihh mãe, houve coisas muito mais dignas de preocupação que você nem notou.

O engraçado é que quando decidi que não iria mais visitar minha vó Valéria ela piorou significativamente. Quando decidi que não forçaria mais Sofia a me ver quando eu fosse na vó Rosa surgiu uma intercorrência.

Quando eu me afasto, as coisas perdem rumo. E isso infla o meu ego.

Quero que a Sofia seja escorraçada, proibida, que chore, que se dê conta de sua pequeneza. E eu nem sei em qual resultado eu espero.


Obs: agora que notei: ela falou do namorado, no dia dos namorados. Um tanto piegas.




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Sinop/MT, 23/07/2020

Atendimentos difíceis


S. é difícil de atender. Tenho a impressão de que não importa se eu fale "sim", "não", "talvez", "amanhã", "agora", "vai dar certo", sempre haverá uma contradita.

Hoje foi a audiência dela, o juiz perguntou como e por quê ela enfiou drogas em pequenas porções envoltas numa fita isolante preta dentro de si. Ela respondeu algumas questões, foi aérea em outras e incisiva - como é o normal - em outras.

Mas um depoimento não é feito de respostas certeiras, mas do que se capta no ar.

Ela confessou o crime, mas justificou-se por razões nobres: salvar a vida ameaçada do irmão recluso; e confessou nas entrelinhas também ser a cara da pobreza em tempos de pandemia.

Os fatos ocorreram em 2019, a pandemia só começou em 2020 e em sua qualificação ela se apresentou:


* como uma mulher de 30 anos, que aparenta um pouco mais, mas não tanto (desprovida de beleza).

* que trabalhava como diarista, "secretaria do lar", mas foi dispensada e agora está trabalhando como babá em casa. O retrato da pandemia em que as pessoas dispensaram suas funcionárias e as creches fecharam.

* que nunca usou drogas.

* que tem uma filha de dez anos (e um relacionamento de quatro)

* que mora em casa própria no bairro Vila Santana. 


A Audiência se deu por videoconferência, então vimos sua casa sem forro. Não escutamos a criança que ela cuida, então hoje ela não ganhou seu salário.

S. não tem o direito de ser grosseira comigo, mas tem razão em ser descontente com a própria vida. Ela não vive em miséria, deve ganhar bolsa família e ter se cadastrado para receber auxílio emergencial como mãe solo. Mas seria a garota propaganda da Defensoria Pública, núcleo criminal: conheceu seu marido na penitenciária, quando ele já estava preso e quando as coisas apertam, ela vê a saída no crime. 

Ela não é miserável, mas é pobre no âmago do termo: ela não tem instrução, mal entende o que eu falo, sente a necessidade de perguntar duas vezes. Não porque é burra, mas porque não se dá ao trabalho de pensar sozinha.

Uma vez eu disse que o fórum ficaria fechado até "tal dia" (que era uma sexta).  Na outra semana ela me perguntou quando o fórum abriria, eu respondi "certo dia" (que era a segunda-feira seguinte) e ela me questionou com figurinhas divertidas, mas a minha vontade era dizer como eu diria para minha irmã - inteligente - de 13 anos: Faça o favor a si mesma e olhe no calendário antes de fazer pergunta idiota. Agora não posso olhar um calendário que me lembro dela.


Mas no Brasil a crise da educação não é uma crise, mas um projeto, então ela será condenada e me restará pelo menos mais uns 02 anos de atendimentos difíceis.


obs: A.P., a cunhada também está no processo. 20 anos, duas filhas (04 e 02 anos) convivente do réu desde antes dos dois homicídios. Profundamente arrependida porque pensou nas filhas: quem as cuidará se ela for presa? Mora com elas na "Cidade Alta" de aluguel.


A.P. tem uma cara extremamente fechada, mas ficamos amigas quando ela estava fazendo curso no SENAI para trabalhar no frigorífico. Eu estava contente que ela estava estudando para uma função, depois fiquei triste por saber que era não cargo administrativo, e sim manual. Me lembrei da época de advocacia trabalhista em que entrávamos com dezenas de ações sobre quem trabalhava na "desossa" e adquiria LER e DORT.




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Sinop/MT, 02/07/2020.

Desabafos pré-férias



Minha mãe dizia que eu estava sempre brava

Dessa vez sinto que é verdade. Isso porque meu estômago dói e meu namorado disse que eu grito no banho (não que eu mesma tenha notado).

Para tanto tirei férias, fiz terapia semana passada e vou marcar uma nova sessão para daqui duas semanas. Até lá, continuarei brava.

Sabe o que me deixa brava?

No fim de semana quando vou visitar meus avós, minha mãe e minha irmã, sinto que tenho que implorar pela participação de minha irmã em minha vida, nos últimos encontros tive que arrumar a bagunça delas e tive que ouvir uma lembrança tratada com insensibilidade.



Inversão de valores

Trabalhar com questões criminais faz com que eu inverta meus valores:

1º Acho bom quando um reeducando não completou o ensino médio. Ao fazer a prova do Encceja ele pode ganhar 50 dias de remição. Melhor ainda se não tiver o ensino fundamental: mais remições.

2º Não ligo para o crime deles. Trato ainda melhor os idosos condenados por estupro. Pelo menos não guardo expectativas para eles saírem: que recebam o melhor dos tratamentos, porém presos.



Hipocrisia


Não é ridículo quando um preso reclama de seu estado de saúde quando é autor de um homicídio?

Odeio duas moças que falam comigo na Defensoria. Esposas, coincidentemente de corréus no mesmo processo, que descrevem os problemas de saúde de seus maridos e criam inválidos em suas cabeças, pessoas incapazes de cometer o latrocínio/homicídio apurado.

Um deles é o R. e ele tem uma história maravilhosa: em um dos processos ele e um tal de G. roubam e matam o dono do comércio, no outro processo R. mata o G.

Já fiz os cálculos, se ele for condenado nesses dois processos ficará no mínimo dez anos preso.

Ultimamente, na defesa de menos aprisionamento estou confrontando um ser imaginário: “onde você estará em dois ou três anos?”, o ser responde “não sei”,  e eu venho com “conheço um monte de gente que ainda estará aprisionada”. Com isso eu quero convencer que o aprisionamento é um atraso na vida de uma pessoa. É um desperdício de vida e de vidas. 

Mas no caso do R. queria vê-lo mesmo condenado. Ver se sua morbidez aguenta a prisão. Podemos acompanhar, no meio do caminho podemos pedir prisão domiciliar. Mas de antemão duvido da necessidade.

Esse réu ainda responde por um segundo homicídio. Altamente negado pois na hora do assassinato ele estava numa consulta oftalmológica como provarão as filmagens e a receita médica de lentes para os óculos. 

Na dúvida, crê-se no réu. Mas olharei através de suas lentes de quase sete graus de miopia: de longe precisa de um filtro esclarecedor e de perto cansa o indivíduo.

obs: estou de férias! 


2024 - OBS: R tinha asma e estávamos na pandemia. Sua esposa temia sua morte por COVID. Nenhum preso morreu de COVID em Sinop durante a pandemia.


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Sinop/MT, 17/07/2021

Com que roupa eu vou?


Quando eu era pequena e via minha mãe escolhendo a roupa do meu irmão depois que ele saía do banho (não lembro se ela escolhia a minha, que era mais velha) e via minha vó fazendo a mesma coisa para o meu vô que já tinha mais de sessenta, achava que era a assim que as coisas eram para os homens. 


Meu avô consulta minha vó sobre qual roupa por. Minha vó respeita em geral as roupas que ele não gosta, mas promove a variabilidade do seu manequim e rodízio no guarda-roupa. Um tempo atrás ele gostava de usar um short de quadriculados pequenos: minha vó dizia que parecia couro de cobra, difícil dizer qual cobra era azul e branca daquele jeito.


Quanto à camisa, sempre de botões e de manga curta. Uma única vez vi meu vô com uma camiseta de malha, era marrom, do tom daqueles uniformes de guerra. Estava um dia frio e achei ele muito bonito. Nunca vi meu avô de casaco e faz tempo que ele não põe uma calça.


Ele não consegue mais abotoar a própria camisa e pede que o faça. Prefere que minha vó se sujeite, mas é difícil para ela também que tem pouca mobilidade e muitas dores. 


Depois do derrame ele “arrasta o pé esquerdo” e costuma perder o chinelo no caminho sem perceber. Criou um calo no osso do pé. Esses dias pediu para minha vó cortar o calo com um alicate. Na última vez que cortei as unhas dos pés dele dei uma lixada. Ele diz que o calo dói quando pisa.


Esse é meu vô e esse é um dos motivos pelos quais ele não viveria sem minha vó.


PS: parece debochado, mas para mim é o amor nas pequenas coisas. É obvio que meu avô sabe qual roupa por, e mesmo que não soubesse, qualquer um poderia fazer isso por ele. 






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Sinop/MT, 20/07/2020

Me senti mal sobre o modo como trabalho


Hoje uma colega de trabalho me fez me sentir mal pelo modo como eu trabalho. Isso foi às 10 da manhã, então pela tarde eu estava com raiva o que potencializou meu desempenho. Assim, os quarenta atendimentos me pareceram dez e que viessem mais.


Ela disse que na Defensoria cível os três servidores não passam informações processuais aos assistidos. Se limitam apenas a dizer aos gabinetes que alguém deseja atendimento e o gabinete que retorne.


Marcelo me perguntou se o concurso que eles prestaram é de telefonista.


Na Defensoria criminal eu respondo tudo o que me perguntam, confiro andamento do recurso e verifico regularidade do cálculo de pena. De alguns eu faço o cálculo pessoalmente.


Estranho que a minha colega de trabalho pôde me fazer me sentir mal por trabalhar bem, melhor que ela, inclusive.


E isso é uma coisa que sempre tive: nenhuma pergunta me era irrespondível. Nenhum assunto me era inacessível. Explico: nunca pensei em assuntos intocáveis, nunca pensei: "isso eu nunca poderei saber", "essa faculdade não é para mim". Pelo contrário: lembro de pensar "quando eu for ao Louvre, vou ver a Monalisa".


Nunca houve limitações para o que eu pensava. Eu podia fazer tudo. Só não poderia naquele momento, ou porque era criança, não tinha terminado a escola, não tinha passaporte.


Nunca me ocorreram coisas impossíveis. E assim permanece. Não há nada que eu não possa fazer ou ser. Os únicos custos são dinheiro, tempo e/ou esforço. E cabe a mim me organizar para pagá-lo, se eu quiser.


Meus colegas pensam que poderão trabalhar nos processos quando forem contratados recepcionistas, assim lhes sobrarão tempo. Ledo engano. Eles nunca trabalharão nos gabinetes por que lhes falta interesse. Interesse que eu nunca deixei de ter.


2024 - OBS: Hoje em dia, de certa forma trabalho no cível, fazendo exatamente o que os outros servidores fazem: agendando atendimentos. Mas a mesma servidora que disse que faço errado, na verdade faz como eu: também confere andamentos e informa o assistido. O que torna muito mais tranquila a espera para o atendimento direto com a assessoria do Defensor. Resta convencer os demais servidores a fazer o mesmo.


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Sinop/MT, 05/09/2020

Meu papel na vida das pessoas


Minha mãe me chamou para ir no feriado visitar Vó Valéria. Eu disse não, falei para ela ir com Felipe na semana que vem. Ela perguntou horrorizada se eu não vou mais ver minha vó, eu menti dizendo que só não quero ir no feriado. Depois escutei minha vó Rosa dizendo que tenho que ir e ela repassar comentário semanal do meu avô de que “essas mulheres não vão ver a D. Valéria?”.


Não, vô.


O convite recusado de hoje seria mais difícil na semana que vem, quando, teoricamente, meu irmão estará por aqui. Mas minha mãe preferiu fazê-lo hoje porque já estaria livre desse função e aproveitar a companhia do meu irmão na semana que vem. Veja que, ao que parece, ele não tem a obrigação moral de visitar nossa avó. 


Meu avô não quer mais fazer a fisioterapia e usar o aparelho auditivo.


Minha vó Rosa não bebe água e permite que qualquer estranho entre em casa.


Minha irmã foge para ir a festas noturnas e voltar antes que minha mãe acorde.


Pela segunda vez me sugestionaram ter filhos.


E em todos esses momentos eu me pergunto qual é meu papel na vida dessas pessoas. 


E o que eu queria?


Queria que parassem de exigir de mim o bem-estar delas.


Eu vivo a minha vida, sem prejudicar a de ninguém, fazendo o melhor que eu posso para as pessoas a minha volta, não criando responsabilidade para ninguém.


Não tenho filhos porque meu dia é bastante cheio, já sinto que não tenho tempo para as coisas que quero fazer e abdico de parte do meu egoísmo para incluir quase sempre dois dias de visita aos meus avós e minha mãe. O que, ultimamente, só me traz amarguras.

Minha psico tirou férias. Eu também queria.




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Sinop/MT, 14/09/2020 – feriado de aniversário da cidade

Sofia está incontrolável


“Sofia está incontrolável”. Mais correto seria dizer que ela está incontrolada.


E eu, frustrada por não ser ouvida, não ser mais referência para ela, preferi pensar que as coisas passam. E isso se torna óbvio quando pondero o aperto no coração no dia em que eu sou notificada da estripulia e dos dias seguintes. O aperto se vai. Mas volta todo domingo quando vejo uma menina incontrolada.


Na última me irritei porque ela deixou a vizinha adulta cortar seu cabelo e fazer sua sobrancelha. Menti dizendo que tinha ficado torta e fina, quando só ficou fina.


Depois pensei que eu não sou vaidosa. Eu não uso sutiã (só top), não faço a sobrancelha, nem pesquisei sobre o alongamento de cílios. Não tomei o pantogar que faz avolumar o cabelo, nem uso salto.


Ela não quer ser como eu. Agora diz em tom de deboche que eu solto pessoas presas.


Da última vez eu disse que o pai dela poderia ser preso porque matou uma pessoa num momento de raiva. Ele não deveria ser privado da saúde por um ato e isso não o definiria. Poderia ser nosso tio que, se teve participação na morte da menina, foi de forma culposa. “Imagine ele preso”. Como ela não debocha de mim de coração, minhas respostas não a atingem.


Minha mãe disse que tentaram arrombar o portãozinho de casa. Ela vai chamar um serralheiro para arrumar o dano.


Não vai providenciar a troca do portão, não vai cadear o portão grande. Não vai instalar cerca elétrica, nem câmeras. Ela confia que não será furtada.


A noção de que não é preciso mudar as coisas a sua volta para você mudar não é libertadora, mas comprometedora. Faz com que você se obrigue com você mesmo.


Isso porque para separar o lixo, você não precisa que o Estado implante a coleta seletiva. Você pode selecionar seu lixo e levar num lugar que recicle. Quanto aos resíduos orgânicos você poderia fazer compostagem, não precisa ser agora no apartamento pequeno, pode ser quando tiver um lugar com mais quintal/área de serviço/varanda.


Quando percebi que não tínhamos mais lugares para pôr os livros olhei alguns móveis na internet. Depois mostraria para Marcelo. Desisti antes disso. Resolvi não comprar mais livros físicos (pelo menos não na mesma quantidade).


E sobre a Sofia, resolvi me preocupar menos, não me envolver. O que significa não dar tantos pitacos. Porque no fim era eu dizendo o quanto as coisas estavam erradas e sendo a chata que só brigava. Mas essa decisão não me traz menos dor.


Eu já entendi que deveria “libertar” minha mãe do que eu gostaria que ela fosse. Talvez fosse mais fácil se a Sofia não existisse. Às vezes penso que minha mãe vive a vida dela como se de fato a Sofia não existisse: quando sai e não leva a filha (em qualquer compromisso que Sofia não queira ir).


Mas essa sou eu dando a minha solução para qualquer coisa: melhor que não existisse.


E dessa forma vou riscando os contatos da minha agenda e me condenando ao ostracismo, o maior pesadelo atual de minha irmã.


Contexto: Há umas três semanas Sofia fugiu de casa com uma amiga de 13 anos e foram numa festa entre 23h e 03h. É como se nada tivesse acontecido desde então.




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Sinop/MT, 11/10/2020.

Linguagens do Amor


Ler o livro “As cinco linguagens do amor (dos adolescentes)” veio como orientação da minha psicóloga para ajudar a entender melhor e me comunicar com minha irmã que atualmente vem fugindo de casa a noite para ir em festas não apropriadas para sua idade.

A leitura me trouxe duas percepções um tanto tristes: 1) não sou o público-alvo. O livro é direcionado a quem cria e educa adolescentes e aos querem fazer de uma maneira melhor. Não é para quem tem contato com o adolescente uma ou duas vezes por semana por uma hora. Assim, esse livro não me ajudará a ser mais bem-quista por minha irmã a partir da mudança das minhas atitudes.

E 2) acho que nunca recebi nenhuma dessas cinco linguagens enquanto era adolescente.

As palavras de afirmação não eram ditas porque minha mãe não falava muito. O toque físico para o adolescente tem que respeitar o tempo dele, e minha mãe não tinha muito tato, assim fiquei hermética. Tempo de qualidade é uma ideia interessante, talvez tenha havido, mas não consigo precisar em que momentos. Atos de serviço pode ser um calcanhar de Aquiles para mim, o momento em que eu tenho que ceder. Mas o autor já disse que se os serviços não são voluntários, são manipulações. E por último, presentes, eu sempre ganhava no dia das crianças.

Na soma geral eu sei que eu tinha um pouco de afeto da minha mãe, também porque, por exclusão, eu não recebia ódio, nem descaso. 

Minha mãe era professora em escola pública e ia de carro para escola. Eu tinha que ir de bicicleta e nunca ganhava carona, apenas se houvesse chuva forte, e nesses casos, não costumava haver carona de volta. Pequena, eu perguntei porque estudávamos em escola particular se ela dava aula em escola pública (era também uma oportunidade de ir de carro para a escola). Minha mãe respondeu que ela queria um estudo melhor para nós. Esse foi o principal ato de serviço dela e eu reconheço.

Penso que a capacidade de aprendizado está ligada absolutamente com a qualidade do ensino fundamental. Se você pode pagar só uma parte do ensino de um filho, opte pelo básico. E desse eu tive do melhor que era possível.

No mais, acho que todas outras linguagens do amor foram menosprezadas e sou amargurada por isso. 

Então, larguei o livro das linguagens do amor e fui para um que me ensinasse o perdão.

Dei para minha mãe um livro chamado “Para tudo há um tempo”, baseado no livro bíblico do Eclesiastes. Ela não leu e como não suporto ver meu dinheiro sendo mal aproveitado, trouxe o livro comigo na mudança: Eu retomei o presente. Infelizmente não terminei o capítulo da quinta linguagem do amor para saber como lidar quando desgostam dos seus presentes.

No sumário não havia uma capítulo sobre o tempo de perdoar, então achei que o capítulo sobre o tempo de curar seria adequado. 

Lá estava escrito: “E então, porque não tratamos as nossas próprias feridas, não temos a capacidade para notar a dor do outro”. Difícil solucionar o meu problema acusando alguém de não tratar suas feridas e causar dor quando pareço fazer o mesmo.

Depois havia a parábola do bom samaritano. O mais interessante da parábola é que não nos ensinam que os samaritanos eram considerados povos menores naquela época, cidadãos de segunda classe. Existe no texto uma certa gradação de castas que passam pelo enfermo, mas o pertencimento inferiorizado do samaritano é algo que só uma pessoa que realmente sabe o contexto pode te apresentar. Esse foi só um adendo, creio que não tenha a ver com meu raciocínio sobre amor. 

E para haver cura a autora dispõe que há dois obstáculos. O primeiro “reside no nosso apego à dor” e o segundo não está claro no texto. Mas já me (des)contento com o primeiro. Desejo reencontrar a minha psicóloga só para perguntar a ela: você acha que me apeguei a essa dor?

De repente me vejo com um discurso parecido com o de um suicida que se justifica: eu só queria que a dor/o vazio se acabasse. Sem querer de fato superar essa dor.

Eu não tenho pensamentos suicidas, só discursos parecidos. Em vários momentos da minha vida eu queria só que o que me incomodava desaparecesse. Sempre fui higienista. Quis que a escola acabasse, o semestre da faculdade, o trabalho na Defensoria, meu pai dentro de casa, o estado vegetativo de minha avó. Nenhuma dessas situações simplesmente evaporou, eu passei por todas elas sem grandes remorsos, mas sinto que não consigo superar as diferenças com minha mãe advindas da adolescência e juventude.

De novo: será que sou apegada à minha dor?

Talvez eu seja, talvez seja de onde tiro fundamento das minhas habilidades. Me autoafirmo como muito boa em várias coisas e legitimo pela rigidez da minha criação. 

Quando eu andava de moto eu dizia: “Em mim não chove”. Mas era porque eu olhava para o céu e saía antes da chuva ou aceitava um ligeiro atraso. “Eu fiz minha monografia de madrugada e fim de semana” enquanto trabalhava na Defensoria 8h/dia e limpava a casa aos sábados, então eu podia achar ridículo uma menina que reprovou um semestre porque se dedicaria ao trabalho de conclusão de curso no mesmo curso que eu. “Eu sou boa ouvinte” porque sou mesmo.

Ou talvez eu não seja apegada à minha dor, mas tenha assimilado e trato ela como importante para determinar a ótima pessoa que sou. Não ótima no sentido de bondosa, mas de invencível e ilimitada.

Mas logo me julgo dizendo que é só uma mentira que conto a mim mesma para ter assimilado a dor. Isso porque, caso eu houvesse superado eu não seria amargurada e não faria minha voz de pacificadora em conversas com a família. Sinto que com eles só posso falar amenidades. Quando o assunto fica mais profundo (leia-se: problemático) sinto todo o tipo de emoção ligada a raiva e frustração e só gostaria de xingar e brigar.

Não quero ler os capítulos sobre o tempo de perder, guerrear, morrer, matar, chorar, afastar. Quero o capítulo final dos tempos de paz.

A palavra final que nos ajuda a interpretar o Eclesiastes é que a paz virá quando silenciarmos barulho dentro de nós e ouvirmos. Eu sou uma ótima ouvinte, mas esqueci de dizer que isso se aplica apenas às histórias bem contatas, objetivas e que me deixem interagir. Enfim, sou uma fã de crônicas.

E no fim é tudo sobre mim… Não é sobre amar melhor a minha irmã, perdoar minha mãe. É sobre eu me curar, libertá-las das minhas expectativas. 

Não é nada demais, essa é a minha vida, eu tenho o direito de estabelecer como ela vai se desenrolar. Eu tenho o direito de ponderar: quero remexer o passado, sentir para perdoar, ou prefiro seguir e cada um com seus problemas?

A resposta parece óbvia, mas se para tudo há um tempo, será que eu quero que a solução seja para esse momento? A resposta é não. Eu tenho outras prioridades, e um pouco mais de amadurecimento não me fará mal.




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Sinop/MT, 21/10/2020

Geração COVID


Li que a “geração COVID” será mais desigual porque está fazendo menos tarefas escolares. Nunca antes pais negligentes com as tarefas dos filhos, tiveram tanta folga. 


E de novo me pergunto se minha irmã terá emprego. Teorias indicam que ela terá uma profissão que ainda não foi inventada. Seria surpreendente se ela prestasse concurso como seus pais e irmãos próximos. Já vejo sua aversão a ser parecida com quem a criou. Se bem que só estou projetando sua adolescência numa versão mais velha que tende a melhorar.

Me perguntei essa semana se Sofia vai usar drogas ou engravidar aos 16 anos. Acho que espero o pior dela, inclusive a burrice e o desemprego.

São prisões. Quem não estuda (em sentido amplo) não consegue viver além do que os olhos alcançam e quem não tem emprego não tem como fazer as próprias escolhas.

Se ela acha que a covid, minha mãe e eu a restringe ela não leu os prognósticos no jornal.


2024 - OBS: olhando em retrospecto, eu exigia muito dela, mesmo.



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Sinop/MT, 30.12.2020.

Compre sapatos no fim do dia


Compre sapatos no fim do dia. A revista feminina dizia que era quando nossos pés estavam mais inchados e perceberíamos onde o candidato poderia nos machucar. Minha vó estava com dois sapatos diferentes da última vez que a vi, nenhum que não machucasse os pés. Ela insiste que o único sapato que lhe pode servir é algum em formato de x. Minha mãe disse que não são feitos mais sapatos desse tipo. Encontrei um na internet, estou esperando chegar. Ela provavelmente não gostará da cor e dirá que está apertado. Sobre a cor, era a única do tamanho 39, sobre o tamanho direi que o couto laceia. Ela concordará e deixará o par de lado. Mas uma influencer me disse que o presente cumpre sua função no momento em que é dado, por isso não importa o que minha vó fará com os R$ 200 que gastei. Mas já pensei comigo que quando minha vó não estiver mais aí para usá-los, vou levá-los até o Lar dos Idosos, onde uma porção de velhinhas vai brigar por eles e então, os deixará de lado novamente. 


Compre sapatos no fim do dia, e veja o quão pouco ergonômicos eles podem ser.

Compre sapatos no fim do dia, e compre um igual ao que já funciona.

Compre sapatos no fim da vida, e relembre o caminho que seus pés percorreram e como tomaram essa forma.


2024 - OBS: eu nunca tive coragem de dar o presente (uma sandália em X de couro). Acabei dando para a família da Dona Acelina. Não fui forte o suficiente para ouvir o "não ficou bom".






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