TEXTOS DE 2019

 Sinop – MT, 01.10.2019



Quando Nietzsche Chorou

Quando eu era adolescente, o professor de gramática disse que podíamos ler dois livros ao invés de um e assim aumentar nossa nota. Para nós era um convite a não estudarmos o português, para ele era uma forma de ampliarmos nossos horizontes ao desenvolver o hábito de leitura. Vejo como uma espécie de psicologia reversa que nos fazia mais inteligentes sem que quiséssemos.

As únicas regras eram que o livro já tivesse sido lido pelo professor e que não fosse filme. Já sem muitas opções, muito porque eu não comprava livros e dependia dos empréstimos, mas também porque a lista já me parecia um tanto boba pois já havia lido os melhores.

Enfim, encontrei “Quando Nietzsche Chorou”: estava disponível, não me parecia uma leitura adolescente e constava na lista dos mais vendidos da Veja. Nessa época eu notava que lia pelo menos três livros constantes entre os mais vendidos de ficção, todos “semiobrigatórios” na escola.

Não terminei a obra. Devolvi à dona e corri ler algum outro. Eu não conhecia Nietzsche, achava que Zaratrusta era um filósofo real, e me identifiquei demais com Anna O.

A paciente somatizava a raiva que sentia por cuidar do pai e querer que ele morresse. Convivia com sentimentos dúbios que lhe causavam intenso sofrimento. Me vi nela.

Eu tinha noção de que meu pai não era uma pessoa que se importava comigo, e fantasiei que se no fim da vida dele eu tivesse que prestar assistência isso seria extremamente doloroso.

Minha vó paterna parece estar no fim de sua vida.

Ela está há onze dias indo e vindo do hospital, quem cuida dela é minha tia e o marido. Eles estão visivelmente cansados e me coloco na situação deles. Mas só penso que preferia que Vó Valéria falecesse.

Nem se compara, mas é algo que penso também em relação a mim. Em qualquer hipótese de muito sofrimento eu preferiria morrer também.

Não é um texto sobre suicídio, é sobre eu pensar sobre cuidar de um senil desde a adolescência e finalmente ver como seria.

Penso nas horas vazias passadas no ambiente hospitalar e prevejo que a leitura não despertaria o mesmo interesse. Penso na vontade de tomar banho em qualquer horário, sem precisar guardar o sabonete depois, isso se não tiver sido esquecido.

É tudo muito egoísta, e talvez o que mais se passe na cabeça do acompanhante é a vontade de que a saúde melhore, não que despenque como eu sugiro. É uma saída fácil, e eu gosto de soluções simples.

Uma vez li que não devemos ter uma visão utilitarista sobre os idosos: se não são mais necessários e úteis aos nossos propósitos pra quê mais dias na terra? Para retirar de mim esse conceito li várias colunas da Mirian Gondenberg. Muitas sobre como ela, na condição de antropóloga pesquisadora, não escuta os velhinhos como médica, psicóloga ou terapeuta, mas como uma real interessada no que eles têm a dizer.

Minha vó Rosa só não se lembra do nome das pessoas e de algumas coisas. Algo natural. Mas conta histórias completas divertidas e por vezes se queixa de algum problema de saúde longo demais.

Minha vó Valéria não se queixa, já não engole mais, usa sonda pelo nariz, a glicemia está descompassada, dorme quase o tempo todo. Só conhece tia Mayra e Bal, talvez pelo tom de voz.

Nunca descobri porque Nietzsche chorou no livro, mas eu sei porque quero chorar agora. 


Sinop, MT - 31.10.2019


Notas para uma vida mais fácil

Meu namorado diz que sou prática e eu gosto disso. Nem sei bem como começou, mas foi logo em nosso começo. Hoje sinto que tem a ver com a minha preguiça ao ver as pessoas levam as próprias vidas.

Minha tia e minha mãe reclamam um pouco sobre como as coisas são difíceis. Minha psicóloga disse que com a idade – ainda que não muita – a gente perde um pouco das funções, da rapidez e da energia e então começamos a delegar aos filhos, conviventes, empregados.

E aí, quando a gente tem de fazer coisas para eles que nos parecem sem sentido é que minha “mentalidade prática” enlouquece.

Sei que é fácil não ver que algo degringolou quando está debaixo dos nossos olhos, precisamos que alguém de fora nos aponte. Mas ao mesmo tempo é horrível receber críticas sobre como conduzimos os assuntos.

E nesse ponto não há jeito fácil. Afinal, se o assunto não é fácil, porque o jeito seria?

Minha avó está totalmente acamada aguardando orientação médica sobre a sonda de gastrotomia. Há dois meses está se alimentando pela sonda nasal. Bal disse que é de uma violência sem tamanho.

Li sobre se cessar a alimentação seria eutanásia e ortotanásia.

Encontrei um artigo* dizendo que o paciente nesse estágio não sente mais fome nem sede, então não seria desumano parar com o tratamento terapêutico. Embora para a família seja algo um tanto trágico.

Lembro de um atestado de óbito da Justiça Federal em que estava descrita desnutrição como causa da morte. Achei muito sério, mas o conjunto de doenças no sistema digestório ocasionou a perda de retenção de nutrientes e a pessoa morreu de inanição. Fiquei menos sentida.

Tia Mayra mede a glicose da vó Valéria diariamente às 3h. Se não estivesse fazendo isso, uma noite dessas a hipoglicemia teria se instalado e após o coma, Vó Valéria teria morrido dormindo.

O artigo científico não me deu alento na solução sobre os pesares com Vó Valéria. Mas tornou a minha vida mais fácil ao sugerir que o paciente deixe um testamento vital. Algo que a gente estuda no direito civil e pela primeira vez vi uma aplicação prática verdadeiramente séria. Porque ninguém merece quem não aceite transfusão sanguínea.

Então segue a lista de coisas para fazer antes que a vida fique difícil demais e eu tenha que delegar minhas próprias coisas:

- renovar meus documentos pessoais aos 60 anos.

- testamento vital indicando a proibição de alimentação artificial quando o prognóstico não for de recuperação.





*OBS: não era um artigo, era o parecer CREMEC n.º 21/2010




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