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ESCRITOR - KARL OVE

E começa aqui, uma série de relatos sobre escritores. O primeiro deles: KARL OVE, da série Minha Luta, ainda num projeto futuro de leitura.


Texto retirado da revista Piauí, da qual sou assinante. 


 diário

EM BUSCA DE KARL OVE

Uma viagem à Noruega e ao passado do autor da série Minha luta

Natalia Timerman | Edição 206, Novembro 2023


15 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_As pessoas se dividem entre as que dormem e as que não dormem, escreveu Linda Boström Knausgård, com quem Karl Ove Knausgård foi casado por anos. Ele pertence ao grupo das que dormem; assim como Linda, eu pertenço ao outro. É nisso que penso quando acordo do inusitado cochilo da tarde, proporcionado pelo fuso de cinco horas e pela insônia de avião que ousei enfrentar sem remédio.

Recapitulo, zonza, as horas até aqui. “Eu jamais moraria neste lugar” foi o pensamento que me assaltou quando saí da estação Nationaltheatret para uma praça, estranhando a aridez sutil da baixa densidade de pessoas. Tentando localizar a direção do hotel, escutei pássaros, pássaros de mar. Gaivotas? Olhei para cima, para o céu branco onde voavam. Elas não cantam, elas gritam.

Combino de encontrar Camilo, meu colega de doutorado, mais tarde. Ele também estuda Knausgård e veio passar seis meses aqui. Decido caminhar em direção aos fiordes, entender o que é, afinal, um fiorde, ir até o limite da cidade, me apossar de qualquer coisa dela. Entender o que me trouxe aqui.

Sinto um forte cheiro de óleo de massagem. Não é o cheiro que imaginaria para Oslo. A alguns metros do hotel, adolescentes jogam basquete em uma quadra; no ponto de ônibus, três pessoas olham cada uma para o seu celular. A cena me incomoda. O que eu esperava? Que na Noruega, aonde vim em busca dos passos de Karl Ove, as pessoas não fossem viciadas em celular?

Caminho até uma pequena plataforma de madeira que boia e me sento nos degraus, atordoada pelo cansaço. Faz cerca de 10 ºC, mas uma mulher e um homem mergulham na água que imagino gélida. Ao meu lado, três rapazes conversam, um deles segurando um bebê, que responde com risadinhas à minha interação.

Camilo vem me encontrar e me leva para comer um lámen, pelo menos pagável. Claro que eu já tinha ouvido falar que a Noruega é um dos países mais caros do mundo, o que não diminui a dor de pagar 40 reais por um café.

Volto a pé, na claridade do que já deveria ser noite. Cruzo com poucos carros, mas me impressiona a religiosidade com que me dão passagem na faixa de pedestres. Sem pressa. É isso, não há trânsito e não há pressa. Deveria ser bom, mas é estranho. Não há quase ninguém na rua. Talvez eu só esteja cansada.

É abismalmente diferente ler e estar aqui, mas a diferença aparece em detalhes muito específicos. Além dos cheiros e sons, há principalmente o silêncio, talvez por causa dele cada som chame tanto a atenção. Um silêncio quase sombrio, estrondoso. Carros não passam, pessoas não gritam.

Tomo remédio para dormir há três anos, mas hoje vou dispensá-lo.

 

16 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_O fiorde é o mar com montanhas ao fundo. O mar sem horizonte. Os fiordes fazem parte das descrições knausgardianas, são muitas vezes seu pano de fundo.

Tomei contato com essas descrições pela primeira vez em 2015, quando li A morte do pai, o primeiro volume da série Minha luta, para o curso de formação de escritores que eu fazia na época. Pode soar enfadonho que um narrador se debruce quase microscopicamente tanto sobre o formato de seu cereal matinal quanto o céu, tanto sobre suas brincadeiras de criança quanto seus gestos ao fumar um cigarro, mas o que acontecia é que eu devorava aquele calhamaço, assim como fiz com os próximos, com a avidez que teria diante de um excitante mistério policial. O mistério, afinal de contas, era o meu próprio fascínio, o meu e o de milhões de outras pessoas ao redor do planeta que se viram fisgadas, viciadas, atônitas diante de um romance quase sem enredo, praticamente a escrita de uma vida comum que passa. Eu esperava a edição do próximo volume da série como uma adolescente espera uma carta de amor, recebia com taquicardia a notícia de sua chegada e detinha-me demoradamente diante da capa, degustando-a, quando a tinha enfim nas mãos. Aqueles personagens – que existiam na realidade, pois Knausgård escreve sobre o que viveu – pareciam parte não da vida dele, mas da minha. Eu sentia que os reconheceria se os encontrasse na rua, e sentia que as próprias ruas do livro eram minhas velhas conhecidas – o cenário não apenas da existência nórdica de Karl Ove, mas de qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo, ou pelo menos do mundo de alguém de classe média, com os dilemas de sua pequena vida burguesa. Lembro de ter terminado o primeiro volume numa viagem à Croácia. No catamarã lotado de Hvar a Dubrovnik, com umas trezentas pessoas a bordo, sentou-se ao meu lado uma mulher que lia o mesmo livro que eu em sua versão em inglês. Ela vinha da Noruega e seu critério de escolha de leitura fora o país; se me dissessem, eu jamais acreditaria que comigo aconteceria quase o oposto. Que me sentiria tão em casa dentro daquelas páginas. E que sairia, anos depois, em busca dessa suposta casa e seus cenários, o livro me levando ao país.

No café da manhã do hotel, experimento o queijo marrom, que já li inúmeras vezes Karl Ove comer. Imagino que seja ruim, pretendo comê-lo como experimento antropológico, mas é tão bom que repito, colocando mais uma fatia quadrada em cima do pão. Tem um gosto conhecido, de infância, havia dito uma amiga. Sinto o mesmo: o gosto de uma infância que não é minha. Sabor de doce de leite, mas salgado.

Pego um ônibus para um museu distante do Centro. Em um trecho de Minha luta, Karl Ove passa de ônibus pelos mesmos lugares onde viviam seus familiares, reivindicando a quem já existiu o estatuto de personagem, pois tanto o passado quanto a ficção têm algo de inacessível, é isso o que os liga. Estar aqui é fazer algo parecido: atestar, de Karl Ove Knausgård, a presença da ausência. Ir ao encalço mais da ausência que da presença. Descobrir o que faz de um texto autobiográfico uma ficção. Mas Karl Ove nunca viveu em Oslo, esteve aqui apenas de passagem, já como escritor famoso, em eventos de divulgação de seus livros. Quem morou aqui foram seus pais, nos primeiros anos de casados. Este ônibus, este caminho, não pertencem a ele, apenas à minha viagem.

Na volta do museu, dois meninos de cabelo quase branco pulam a grade da calçada. Eles poderiam ter simplesmente dado a volta, o limite da grade não estava nada longe, mas vejo prazer na contravenção. Um daqueles meninos poderia ser Karl Ove. Num país que promete dezoito dias de prisão para quem passa de 150 km/h, ou que detém quem está dirigindo bêbado na manhã seguinte a uma noitada, qual o significado de confessar que jogou uma pedra num carro ou que atirou um quadro da janela de um hotel, como ele faz em Minha luta?

Na rua, mais homens que mulheres empurram carrinhos de bebê ou seguram na mão de crianças. Ou melhor, não vejo uma única mulher cuidando de seu filho, apenas homens. Ah, ali. Uma avó cuidando da neta, mas só. As mães estão fazendo outra coisa que não cuidar dos filhos. Karl Ove não é novidade alguma na Noruega, ou na Suécia, imagino, onde morava quando os filhos eram pequenos, ele não é herói nenhum por assumir a rotina das crianças.

 

17 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_Hoje é o dia mais importante da Noruega, por isso decidi vir nesta época. Aproveitei, é claro, a presença do Camilo, de quem me aproximei primeiro pelo nosso interesse knausgardiano em comum e depois pelos papos e bebedeiras em que sempre redundavam as reuniões do nosso grupo de estudos. Ele acabou virando meu parça, uma das únicas pessoas com quem consigo escrever um texto a quatro mãos, e um grande amigo. Ele é quem disse que seria uma boa ideia estar aqui na celebração da data em que os noruegueses assinaram sua Constituição, em 1814. Tínhamos lido sobre a efeméride em Minha luta, foi uma das primeiras experiências de euforia alcóolica do jovem Karl Ove e um de seus primeiros apagões.

Já na recepção do hotel, o sorriso da recepcionista me surpreende. Hoje estamos todos felizes, ela diz, ninguém se aborrece com nada, quem dera todos os dias fossem assim. Ela avisa que há doces comemorativos no café da manhã e me oferece uma taça de espumante, que me sinto obrigada a aceitar apesar de não ser nem nove da manhã.

Em cada mesa, uma bandeira da Noruega; os outros hóspedes também bebem, há um clima de festa no ar, confirmado pelas pessoas em trajes típicos passando na rua, as mulheres com vestidos pretos bordados de flores avermelhadas e penduricalhos dourados, os homens com calças bufantes que terminam abaixo do joelho, os paletós cheios de botões.

É difícil encontrar Camilo perto da Slottsplassen, a praça do palácio real. A região está abarrotada, há desfiles, famílias inteiras brotam de todas as partes, é preciso cortar caminho pela estação de metrô. O metrô lotado deles: nada perto do horário do rush de São Paulo, aqui parece sempre haver ar suficiente entre as pessoas.

Camilo trouxe duas garrafas de vinho e algumas cervejas na mochila. Hoje pode tudo: em dias comuns, desde há alguns anos não é mais permitido beber na rua, nem sequer comprar bebidas após as 20 horas no mercado, apenas em bares. Teria Minha luta existido sob essas regras? Teria Karl Ove feito tanta merda, roubado bicicletas, acordado numa casa de repouso sem saber onde estava? Seu pai teria sido alcoólatra e acabado em estado deplorável na casa da própria mãe? É provável que sim, Camilo e eu ponderamos. Boa parte daquilo já tinha sido feito como contravenção, por exemplo quando Karl Ove e os amigos bebem no Ano-Novo, ainda menores de idade.

Andamos por aí, paramos para comer um churrasco de rua, estamos totalmente embriagados. Pergunto para o dono de um bar, tropeçando nas palavras, se ele conhece Knausgård. Ele não leu Minha luta, mas leu The morning star (A estrela da manhã), um de seus livros mais recentes. Disse que gosta, destacando-se de tantos que o criticam. Por aqui as pessoas acham que sua escrita é escandinava demais, enquanto nós achamos que é universal.

O desfile já terminou, jovens se sentam em rodas nas praças, nós andamos até outro bairro, as pessoas nas ruas, o movimento, a alegria. É como um Carnaval sem música e dança. Um carnaval sem Carnaval.

É alegria ou embriaguez?, eu pergunto em voz alta. Camilo diz que qualquer bar na Barra Funda é melhor que a Noruega inteira. More than this there is fucking nothing (mais do que isso não tem porra nenhuma), eu devolvo a ele sorrindo, e ele sabe do que estou falando, da música que Karl Ove escuta no final do volume 3 num dos momentos de maior emoção de sua vida.

Vamos tropeçando até um restaurante mexicano onde pedimos mais cerveja e o taco mais apimentado da minha vida. O lugar está cheio, esperamos para conseguir sentar. Na mesa próxima ao banheiro, o xaveco rola à solta. Há dois homens de cabelo preto, que escuto falarem inglês. Eles me abordam quando estou na fila do banheiro, e quando digo que sou brasileira, o mais atarracado me abraça e me levanta do chão, estalando minhas costas. Conta, num português nativo, mas enferrujado, que mora aqui há oito anos, é professor de lutas e casado com uma norueguesa, mas se sente sufocado, ela controla seus passos o tempo todo (sim, estou vendo). Depois, emenda que engravidou outra mulher e deu porrada em uns caras, foi processado, mas absolvido por legítima defesa.

Já são quase dez da noite e ainda está claro quando decido voltar. Me despeço de Camilo, consulto o mapa, é uma bela caminhada, mas quero ir a pé, curtindo a rua, a bebedeira, a festa que ainda está.

Só vejo meninas de uns 17 anos e homens, todos bêbados, de idade entre 20 e 60. Quatro deles estão prestes a apostar corrida na calçada. Os prédios são baixos, todos bonitos, como se Oslo inteira, ou pelo menos a que conheci, fosse um bairro charmoso e rico da minha cidade. Rapazes seguram sacos plásticos com garrafas esperando aceite para entrar nos prédios, há música abafada vinda de alguns deles, risadas e conversas. Há muitas festas privadas espalhadas agora, quando a festa pública já definha e as ruas começam a se esvaziar. Sinto vontade de entrar em uma delas, de me apresentar a alguém e entrar junto em uma casa, em outra vida, mas são tantas que não consigo escolher, muitas é igual a nenhuma. Sigo andando, é um mundo no qual não posso entrar, mas que de alguma forma sinto que conheço: sei de boa parte dos enredos que podem se passar ali, entre aqueles grupos de amigos de colégio, faculdade, trabalho. Como se o espectro de experiência humana, pelo menos quando garantidas suas condições básicas de existência, variasse muito pouco, matizes ínfimos demais para serem chamados de diferenças.

Chego a um parque, que não sinto medo de atravessar. Eu nunca havia me sentido tão segura em um lugar, e sei que não é só a coragem etílica. Há um rio, o barulho da queda d’água logo acima contrasta com os cadeados pendurados nas grades de uma ponte. O som forte da água, o monte de cadeados dos apaixonados, duas possibilidades interpretativas – a realidade e o enredo.

Sou a única a andar sozinha. Atravesso o pátio do palácio agora sujo, mas nada comparado ao chão de um bloco de Carnaval. É a primeira vez que vejo a quadra ao lado do hotel vazia.

 

18 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Dormi mal. Sem remédio: depois do sucesso da primeira noite, decidi não tomar durante a viagem, mas o álcool e a ressaca moral, mais que física, hoje atrapalharam.

Boa parte do que anotei ontem foi em garranchos quase incompreensíveis no meu caderno, no caminho de volta para o hotel. Releio as anotações. Na hora, as ideias pareciam geniais. Lembro de Ioga, romance que trouxe para a viagem, e do que diz Emmanuel Carrère sobre sua produção intelectual enquanto bêbado: “Eu estava sempre embriagado ou chapado, você acredita que encontrou uma pedra preciosa e descobre que só tem merda na mão.”

Me impressiono que em pleno século XXI ainda não exista um remédio eficaz para o dia seguinte a uma bebedeira. Tento ir ao Museu Munch, chego tarde; tento uma livraria, está fechada. As portas do dia estão fechadas para mim, e a ressaca é outra porta entre mim e o mundo, uma camada que nos separa. Talvez a experiência mais essencialmente knausgardiana seja de fato a ressaca, mas eu não precisaria ter vindo até aqui para vivê-la.

 

19 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_No check-out do hotel, noto que cobraram o espumante de 17 de maio. Poucas felicidades são gratuitas.

Camilo chega no último minuto antes da saída do trem para Bergen. Pela janela, corre a paisagem, casas ainda quase que atoladas na neve alternando-se com florestas de coníferas e lagos degelados. Camilo escuta um podcast, eu leio. Depois procuramos no Kindle, onde baixei todos os volumes de Minha luta, referências aos locais citados por Knausgård, principalmente no volume 5, que se passa em Bergen.

Para o almoço, pedimos no restaurante do trem salsicha no lompe, uma panqueca de batata daqui. Camilo me conta que o bibliotecário da Universidade de Oslo fez um levantamento sobre Knausgård e, pesquisando os artigos que ele escreveu aos 17 anos em um jornal, concluiu que, para escrever Minha luta, certamente os consultou, pois há descrições minuciosas de fotos, por exemplo, das quais seria impossível se lembrar de cabeça. A imagem que ele tenta construir de uma escrita espontânea, que simplesmente fluía, não é verdadeira. Ele também deturpou características para se fazer mais interessante como personagem, mais inseguro: os artigos eram bem-aceitos, ele era uma pessoa admirada. Mas isso pode ser mais que um artifício literário: pode ser um efeito de sinceridade, os limites do personagem do autor sendo borrados e chegando ao próprio autor, à sua pessoa, às suas inseguranças. Jamais saberei.

Camilo lembra que, em uma entrevista para a tevê norueguesa, Karl Ove confirma ter inventado a segunda ida à capela para ver o corpo do pai, no volume 1. O tio diz que ele inventou não só isso, mas tudo. Ou melhor: ele o acusa de ter mentido. A ex-mulher de Emmanuel Carrère também o acusa de ter mentido em Ioga. Mas como uma ficção pode mentir?

Karl Ove descreve a sensação de arrebatamento ao andar por Bryggen, ao chegar a uma cidade grande, mas Bergen é minúscula, as colinas verdes mostram seus limites, parece uma cidade de fotografia de quebra-cabeças, com casinhas coloridas de teto triangular e o braço de mar do fiorde. Indiscutivelmente é uma cidade linda. É difícil imaginar Karl Ove fazendo bosta por aqui, é como se o relato e o lugar não se conectassem.

Deixamos nossas coisas no Airbnb e vamos ao mercado. Será que ele esteve aqui?, eu pergunto a Camilo, será que fez compras entre essas mesmas prateleiras? Definitivamente não, ele me responde. Tudo aquilo foi há trinta anos, na década de 1990. Com certeza está tudo diferente agora.

Depois de guardar as compras, checo meu celular. Antes de sair de Oslo, escrevi para Yngve, irmão de Karl Ove, a quem sigo há alguns anos no Instagram, dizendo que estávamos indo para Bergen, que o Camilo estuda a obra do irmão dele na Universidade de Oslo, e a sensação era a de que eu estava escrevendo para Swann de Em busca do tempo perdido. Ele não respondeu. Ainda bem. Há algo sagrado em um personagem, há algo sagrado em Swann, algo que precisa ficar preso nas páginas de um livro.

Seguimos as descrições a partir de uma praça para chegar à primeira casa de Karl Ove em Bergen. Uma casa branca, de dois andares e um subsolo, com porta e telhado azulado. Por uma total coincidência, nossa hospedagem fica a menos de uma quadra. Olho emocionada para a janela do porão de onde ele via a rua, com a persiana fechada. Fotografo, posto, imagino aquele pobre sofredor, suas ressacas, suas masturbações, seus bloqueios criativos, me envergonho do tamanho da minha emoção, tento diminuir o sorriso. Descemos um pouco a rua, e então o Camilo suspende o passo, diz pera aí, olha para uma outra casa, também diante da placa com o nome da rua (mas outra placa, na esquina de baixo), e atesta: pode ser essa aqui também. Talvez eu tenha me emocionado diante da casa errada.

Descemos a colina pelas ruas sinuosas de paralelepípedo, paro de tanto em tanto para fotografar, deve ter sido maravilhoso morar aqui. Chegamos ao Thon Hotel Orion, onde Yngve trabalhou quando Karl Ove se mudou para cá, ele ia esperar o irmão várias vezes, foi seu primeiro destino ao chegar a Bergen. O atendente está atribulado, a recepção hoje está cheia, como estava naquele dia três décadas atrás.

Atravessamos para o outro lado do braço de mar, seguimos o mapa em direção à Skrivekunstakademiet, onde Karl Ove estudou escrita criativa. Estamos percorrendo o mesmo caminho que ele por essas pequenas ruas ladeadas de casas bem cuidadas, o fiorde ou as montanhas aparecendo ao fundo de quando em quando. Tudo é colorido. Apesar do frio e da garoa, é mais que agradável caminhar por aqui. Uma portinha nos leva a um átrio, seguimos por um dos corredores, desértico e frio, e de repente estamos diante da porta da Skrivekunstakademiet, azul, com fechadura eletrônica (certamente outra que a dos tempos de Karl Ove). É só uma porta. A imaginação é quase sempre melhor que a realidade. Ao fundo do corredor, uma janela que dá para o fiorde, a vista para fora bem melhor que a de dentro. Na saída, olhamos um a um os nomes das caixas de correio, tentando achar o da escola de Karl Ove, tentando imaginar que foi ali que chegou o original que ele mandou para ser aceito. Não encontramos.

Saímos em silêncio. Camilo nos guia pelo mapa até o Café Opera e de repente se detém em uma esquina com janelões e mesas na calçada. É aqui, ele diz. Olho para o lugar e digo, peremptória: Não, não é. É aqui, ele repete. Não é, eu contesto.

O Café Opera é o maior baque até agora. Eu imaginava um lugar escuro, um inferninho, com música alta, fumaça e jovens descolados, e o que encontro é um lugar claro, mais para chique, silencioso, que provavelmente minha avó frequentaria. Eu jamais imaginaria que era assim o ponto de encontro de Karl Ove com o irmão e os amigos, se eu passasse aqui na frente por acaso não pararia jamais.

Não temos outra opção que entrar. Pedimos uma cerveja, toca Sorriso dela, de Erasmo Carlos. Erasmo e Karl Ove combinam muito, Camilo e eu concluímos, tentando nos salvar da decepção. Lembramos que havia um andar de cima. Lá, grupos se espalham nas mesas para uma gincana de adivinhação. Realmente, um lugar aonde minha avó iria. Na minha vez de pegar cerveja, pergunto ao barman se ali chegou a ter um piano, tentando, ainda, desfazer o engano de que aquele lugar seria o mesmo dos livros. Sim, muitos anos antes da época dele havia um piano, e deve voltar a ter, querem fazer de novo música ao vivo. Percebendo meu interesse, ele conta que vão reformar o bar, ao que eu respondo “Ó, cuidado que esse é um lugar histórico”, e ele: “Ah, sim, com certeza.” Tento falar oito vezes o nome de Knausgård e na oitava ele entende: “Ah sim, já ouvi falar, mas não li”, e eu: “Mas você sabe que nos livros ele escreveu muito sobre este lugar, né?”, e ele simplesmente não sabia. Inacreditável. Como é que eles não sabem? Como o barman de onde Karl Ove enchia a cara não sabe da relação dele com o Café Opera, como não sabe que foi nesse banheiro que ele cortou o rosto, quando sentiu ciúme de sua namorada e Yngve conversando? Meu Deus. Eu achei que seriam pontos turísticos, mas ninguém está nem aí. Quando eu disse que era um lugar importante, ele provavelmente achou que eu me referia às primeiras apresentações do dueto norueguês Kings of Convenience, que foram ali. Karl Ove poderia ter escrito em qualquer lugar, sobre qualquer lugar. O fato de ter chegado tão perto é a questão, não importa de onde, o que importa é a proximidade.

Depois, já bêbados há algum tempo, caminhamos um pouco, mas faz muito frio na rua (para mim, menos de 10 ºC é frio demais), então logo entramos em outro bar, bem mais aconchegante, onde as pessoas estão à vontade, conversando, jogando jogos de tabuleiro, à temperatura perfeita, à iluminação perfeita. Seguir os passos de Karl Ove quase nunca é a melhor opção. Em uma mesa à esquerda, há uma mulher de verde que estava jogando quiz no Café Opera, reparamos nela porque puxava os fios do próprio cabelo, e de repente começou a tocar More than this na versão do final do volume 3, a voz do Bryan Ferry, a mesma que Karl Ove tinha escutado, bem quando estávamos lá.

Passamos por um Café Opera transformado na volta. Cortinas foram baixadas, agora há um DJ e pessoas dançando loucamente, não muitas, mas o suficiente para nos sentirmos convidados a entrar e nos juntar, e agora sim me sinto dentro do lugar dos livros de Knausgård, agora me sinto dentro dos livros provavelmente ajudada pela alegria do álcool, essa cola existencial de sentido que faz tudo se interligar. Um homem muito magro, de cabelos longos e cavanhaque faz movimentos exagerados e me convida para a roda. Quando ele sai, puxo para dançar uma garota de saia xadrez que parece a Lenu de A amiga genial depois de um ácido, dançando roboticamente. Não conhecemos ninguém, mas todos se tornam personagens, reconhecíveis, pessoas que eu buscaria amanhã atrás de qualquer tipo de familiaridade e me alegraria se encontrasse. Os melhores personagens são os da nossa viagem, não os do livro.

 

20 DE MAIO, SÁBADO_Passeio de barco pelos fiordes. A vista é uma aberração de beleza na parte de cima, onde o vento congela o nariz. Somos deixados numa estação como de trem, minúscula, só que de barco, uma paisagem cinematográfica ao fundo, árvores e montanhas nevadas. É tudo longe e bonito e vazio. Tenho a sensação de que o barco vai nos deixar lá, de que seremos abandonados e jogados para uma outra história, mas pontualmente outro barco aporta.

A multiplicidade dos tons de verde das árvores me impressiona. Knausgård os descreveu minuciosamente, mas não sinto que tenha chegado perto de imaginar o que vejo, não importa quão exaustivamente ele tentou se aproximar com as palavras das paisagens e das coisas. Sempre tive dificuldade de visualizar descrições, não tenho como saber se é uma dificuldade minha ou de outras pessoas também, me pergunto se uma descrição me leva ao objeto que o autor queria que eu visse ou na verdade só prova a diferença entre o olhar de uma pessoa e de outra e a deficiência da literatura para proporcionar uma experiência em comum. Talvez, pelo contrário, ela só reforce a experiência individual.

 

21 DE MAIO, DOMINGO_O ônibus para Stavanger atravessa um fiorde de balsa, nunca imaginei que a paisagem fosse assim estonteante.

Deixo os olhos vagarem pela janela, adormeço, acordo. Folheio Ioga. A capa da edição brasileira tem um comentário elogioso de Karl Ove Knausgård, o que faz sentido: ele e Carrère são dos maiores sócios do clube dos escritores egocêntricos. Por que os leio? Quero fazer parte do clube? Se quisesse, conseguiria ou seria necessário que eu fosse um homem branco cis? Carrère escreve que o mais interessante na vida é

tentar saber isto: o que é ser outra pessoa que não você. Esse é um dos motivos pelos quais se escrevem livros; o outro é descobrir o que é ser você mesmo. Eu me ocupo principalmente do que é ser eu mesmo. Até demais, sem dúvida. Há pouco tempo, me dei conta de que minha amiga Hélène F. começa a maioria das frases com “você” e eu, com “eu”. […] Simone Weil, de novo ela, dizia: há muito pouca gente, no fim das contas, que sabe que os outros existem.

Penso na autoficção escrita por homens versus aquela escrita pelas mulheres. Rachel Cusk escreveu uma trilogia em que fala de si por meio dos outros, escutando-os, depois que seus livros mais autobiográficos foram criticados. Uma escritora que versa sobre maternidade corre grandes chances de ter sua literatura reduzida a uma pseudocategoria. Um escritor que escreve sobre paternidade é herói. Knausgård é tido como expressão da mudança de paradigma de gênero porque é um homem cuidando de seus filhos. Nenhum outro homem escrevia sobre isso antes, porque quem cuidava dos filhos dos escritores eram suas mulheres.

Stavanger é nosso lugar de passagem, não temos planos knausgardianos por aqui. Alugamos uma casinha típica, no Centro. Sentimos um cheiro peculiar ao entrar, cheiro de Noruega, diz Camilo, um odor de madeira com um resto de calor que ficou de outro frio. Só se sente o cheiro ao entrar, depois é preciso um esforço para perceber só uma nuance, e, no entanto, a cada vez que você sai e entra de novo, vem uma lufada intensa, quase exigente, nauseante, não por ser ruim, mas simplesmente por ser um cheiro.

Faz muito frio, chove, decido ficar lendo enquanto Camilo sai para comer. Escuto os passos dele no andar de cima ecoando na madeira. Karl Ove já descreveu esse som.

Pesquisando o que fazer em Stavanger, encontro uma trilha relativamente próxima, acessível de ônibus, que segundo os comentários da internet é muito bonita. Mando o link para o Camilo, que logo me responde: Vamos, é o lugar da capa brasileira do sexto volume.

 

22 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_A fotografia da falésia Preikestolen ou Pulpit Rock que ilustra a capa é linda, mas não tem nada a ver com o livro. Knausgård nunca menciona o local. O ônibus atrasa um pouco e chove. Cochilo no caminho, tenho cochilado em cada trecho de trem, ônibus ou barco, como se de repente tivesse aprendido a dormir ou estivesse reparando um sono de anos, como se me visse liberada do peso da minha própria vida.

A trilha é longa, são duas horas de caminhada e muita subida, e há gente de vários lugares do mundo. O esforço compensa. A vista das águas verdes do fiorde, das montanhas e das pedras escarpadas é deslumbrante e vertiginosa. Não consigo decidir se é mais bonito olhar da maior pedra (a Pulpit Rock) ou de um pouco mais longe, observando o panorama das pessoas minúsculas perto do abismo, que é justamente a capa de O fim, o último volume da série.

A capa do sexto volume talvez tenha sim alguma coisa a ver com a obra. A dúvida quanto a fotografar a pedra e quem está nela ou a paisagem vista estando na pedra talvez seja uma metáfora para a literatura, pelo menos a literatura que pretende falar sobre a vida e que acaba se perguntando se ela própria é uma forma de vida, se ler é viver, ou se escrever é viver.

 

23 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_No trem, pesquisando as ocorrências de “Kristiansand” em Minha luta, deparo com a descrição de uma gaivota revirando lixo. Eu havia passado batido nas menções às gaivotas até tê-las visto com meus próprios olhos.

Vou atrás de um café e converso com a atendente, simpaticíssima, que fala um inglês perfeito que diz ter aprimorado lendo. Me pergunta se estou de férias. Conto que estou em busca de Karl Ove. Quem? Capricho na pronúncia, que a essa altura já consegui aprimorar: nada. O autor que escreveu sobre a própria vida em detalhes: nada. Abro uma página da internet com seu nome e sua foto, certa de que o equívoco vai se desfazer: nada. Ela simplesmente não o conhece. “Ah, então você leu esse autor norueguês, gostou e veio até aqui?”

Camilo encontra o endereço da casa dos avós de Karl Ove numa matéria em norueguês sobre uma mobilização contra a construção de outro andar em uma das residências vizinhas. O tipo de problema norueguês digno de notícia de jornal, eu digo, e o Camilo completa, sim, os escandinavos, não tendo problemas sociais, podem se deter em questões filosóficas e existenciais, Minha luta jamais poderia ter sido escrito por um brasileiro.

Não demoramos muito a achar a casa; mais uma vez me parece que estamos no lugar errado. A vizinhança é tranquila, arborizada, as casas são bem cuidadas, eu não tinha essa impressão a partir da leitura de Karl Ove. A casa onde o pai dele viveu os últimos anos, onde se destruiu diante da própria mãe, que apenas assistia se embriagando junto, onde morreu, a casa cuja limpeza é minuciosamente descrita em páginas e páginas do primeiro volume de Minha luta, bem, estamos diante dela. Eu me aproximo, olho-a de todos os ângulos, reparo na janela e decido tocar a campainha. Quase consigo ouvir meu coração nos instantes que levo para compreender que ninguém vai atender. Estou tensa, como se o som da campainha pudesse atravessar não só a barreira do espaço – a porta –, mas também o tempo, como se pudesse subverter a relação entre realidade e ficção.

Um carro para em uma das casas próximas e decidimos falar com o morador. É uma mulher chamada Ana, que confirma que aquela é a casa dos livros: ela leu e se emocionou. O avô de Karl Ove passava de bicicleta todos os dias, e ela se lembra bem da época dos acontecimentos de Minha luta, Karl Ove e Yngve vinham muito para cá. Solícita, conta que os livros chegaram muitos anos depois da mudança da família Knausgård, e houve mudanças nas casas da vizinhança também, mas em Kristiansand no geral e no seu círculo de amigos e de trabalho, os livros eram um tema recorrente. Havia uma distinção entre os que tinham opinião negativa sobre a exposição da família e os que achavam que era uma literatura boa e importante. Se ela não está enganada, o tio, que tentou impedir a publicação da série, morava não muito longe e várias pessoas o apoiaram. As suposições sobre o alcoolismo do pai e da avó foram confirmadas, e isso foi um pouco triste. Ana ficou muito impressionada com os detalhes de que Karl Ove se lembrava, que evocaram lembranças concretas para ela também, como os irmãos subindo e descendo a colina até a casa dos avós e se sentando perto da janela da cozinha. Ao mesmo tempo, chamaram sua atenção coisas que não batiam com a realidade, por exemplo a profissão do avô, que se lembra de ele ter mudado no livro. Mas o principal, ela completa, é que ele faz grande literatura e escreve de forma fantástica.

Saio de lá extasiada. Ali mesmo faço uma postagem da casa no Instagram, sorrio enquanto caminhamos, mas de repente sobe ao meu peito uma golfada de angústia. Imagino Yngve vendo minha mensagem, entrando na minha página da rede social para descobrir algo sobre mim e se deparando com a foto da casa dos seus avós. Ele certamente se incomodaria, eu agora estou assolada pela sensação de que fizemos algo errado, invadimos uma intimidade, transgredimos um limiar, talvez o limiar entre realidade e ficção.

Penso em como me sinto quando tentam invadir minha vida, eu que, como escritora, tenho um alcance infinitamente menor que Knausgård. Só que eu não penso em nada disso ao escrever, e tenho certeza de que Karl Ove também não pensava. Ele jamais poderia imaginar que dois brasileiros seguiriam seus passos na Noruega tantos anos depois. A casa foi vendida em 2000, o pai dele morreu em 1998, e tudo isso me faz pensar na relação entre escrita e vida, entre literatura e realidade. Se escrevemos sobre a realidade – e sempre se escreve sobre a realidade, pelo menos em algum grau –, possibilitamos esse tipo de leitura. E talvez parte do meu incômodo seja porque essa não era a leitura que a obra pedia, uma leitura a partir da concretude do lugar, que obviamente não tem nada a ver com o que eu imaginava.

 

24 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_O motorista de ônibus de linha dirige em um dia comum; ele não pode sequer imaginar que leva dois passageiros para um cenário de ficção. Estamos indo de Arendal para Tromøya, onde Karl Ove viveu toda a infância, cenário de boa parte de suas memórias, de seus livros. O ônibus cruza a ponte, tudo é sublime, me sinto incrivelmente bem nesse lugar e lamento que passaremos aqui apenas uma tarde.

Descemos no ponto que o mapa de Camilo indica ser o mais próximo à casa da infância de Karl Ove. Agora sim, podemos dizer: ele esteve aqui. Ele esteve aqui talvez mais que em qualquer outro lugar, ele cresceu aqui, viveu tudo aquilo que depois escreveu nos livros, e o lugar, pacato, pequeno, com poucas casas, não parece ter mudado muito desde aquela época. Caminhamos menos de dez minutos até a casa, o dia está ensolarado, não precisamos nem de casaco. É ali, Camilo diz, e eu pergunto, tendo aprendido a desconfiar, se ele tem certeza. Ele abre a fotografia de uma reportagem da tevê norueguesa e comparamos. Sim, é ela. Exatamente a mesma. Reconheceríamos essa casa e a dos avós sem as imagens, só com as descrições? Tenho sérias dúvidas. Estar na Noruega me mostrou o quanto é diferente a imagem que eu tinha da realidade, me distanciou. A literatura aproxima, a realidade afasta. Knausgård escreve que sua infância foi a “vida improvisada num lugar que mais parecia um cortiço”, e aquele lugar está definitivamente longe de parecer um cortiço. Mas ele continua dizendo que “a lembrança não é uma grandeza confiável ao longo da vida. Mas não simplesmente porque o valor maior da lembrança não seja a verdade. […] O que é lembrado de maneira correta, veja bem, jamais nos é dado escolher”.

Não é um cortiço, mas, chegando perto, a casa está malcuidada, suja, há restos de reforma espalhados, diferente das outras casas daqui, sempre impecáveis. Mesmo assim, o lugar não parece abandonado, parece vivo. Toco a campainha, já acostumada a ter o silêncio como resposta, mas alguns instantes depois escuto o som de passos e uma mulher de cabelos curtos abre a porta. Me apresento, digo que estou seguindo os passos de Karl Ove Knausgård na Noruega, e ela não se surpreende. Seu nome é Tina e ela mora nesta casa há vinte anos. Eu pergunto se podemos entrar, ela hesita por um momento, mas enfim abre mais a porta. Tiramos nossos sapatos na porta, como todo norueguês, e Tina nos presenteia com um verdadeiro tour, mas adverte que quase nada é original da época em que Karl Ove morou aqui, exceto o piso da entrada, a escada e o piso da sala de cima. Ela nos mostra todos os cômodos e ressalta o vitrozinho por onde Karl Ove entrava escondido para não ser visto pelo pai. Tina não leu nenhum dos livros; como não é da ilha, achou que não teria interesse. Seu marido gostou de ler, porque é daqui e reconhece as pessoas. No entanto, ela sabe o que pode nos interessar na casa, mostra a “caverna” do pai, onde Karl Ove e Yngve eram proibidos de entrar, que está reformada e agora é uma saleta. Conta da matéria para a tevê graças à qual conseguimos encontrar a casa. Karl Ove veio e foi a primeira vez que ele viu o recinto interdito do pai, já como parte da casa de outra pessoa, mais de trinta anos depois. Ele lhe deu um livro autografado em que a agradecia por deixá-lo entrar em sua casa.

Da janela vejo o jardim, o lugar onde Karl Ove viu o pai trabalhando numa cratera no começo do primeiro volume, logo depois do trecho inicial sobre a morte e seu apelo tectônico. Foi em minha segunda leitura que o trecho me saltou aos olhos: a primeira aparição do pai de Knausgård é na terra, o lugar destinado aos mortos. Tive a oportunidade de perguntar para Karl Ove em uma entrevista se aquilo foi proposital, e fiquei envaidecida quando ele, na tela do Zoom, arregalou os olhos e disse que era a primeira vez que ouvia aquilo, mas que não havia sido pensado, era assim que ele lembrava.

Tina pede que eu não tire fotos de dentro da casa, pois está muito bagunçada. Também prefere que eu não a fotografe, e explica: terminou recentemente o tratamento de um câncer, e então seus cabelos curtos fazem sentido, ralos, é por causa da quimioterapia que vejo a primeira mulher de cabelos curtos na Noruega, e entendo por que a casa está largada e suja. Enterneço-me muito mais por ela que pela visita da casa da infância de Karl Ove; é a história dela, não a dele, que me emociona.

Ao nos despedirmos, Tina diz que muitos leitores vêm à casa, mas quase nenhum entra, e confirma sua sabedoria quanto aos nossos interesses: os vizinhos da esquerda ainda são a família Prestbakmo, os pais de Geir, o melhor amigo de Karl Ove, com quem ele passava boa parte do tempo na infância.[1] Tina conta que os pais de Geir estão agora com 80 anos.

Já nos bastaria o que temos até agora, mas não podemos perder a oportunidade de conversar com os Prestbakmo. Sem muita expectativa, bato na porta. Na soleira, uma plaquinha florida com os nomes Martha e Ola-Jan Prestbakmo. Alguns instantes depois, vislumbro o rosto de uma senhora na janela entreaberta do andar de cima. Me apresento, ela pede com a mão que eu espere, e após alguns minutos, um senhor baixo e muito bonito aparece do jardim lateral. Digo que somos brasileiros e que estamos seguindo os rastros de Karl Ove, ele sorri e nos convida a segui-lo para a parte de trás da casa.

Ela nos faz café, serve chocolates, e nos colocamos a conversar por horas em norueguês, porque eles mal falam inglês. Entendo só algumas palavras e o que Camilo vai me traduzindo. Ola-Jan é o único que nos permite gravar, e ele diz tanto. Aponta para o jardim onde Karl Ove e seu filho jogavam bola (na casa dele não dava porque o pai era muito bravo, conta, sorrindo); mostra na casa de Tina a janela do quarto de Yngve e a de Karl Ove; fala sobre o que não está nos livros, que ambos leram, relembra de quando ia com o pai de Karl Ove para a escola onde começaram juntos a lecionar. Eram oito meninos nos arredores da casa que faziam tudo em bando, é maravilhosa a ideia de infância naquele lugar.

A nostalgia se desprende de suas palavras, mas não só isso. Não é só do passado que ele fala, nem mesmo de uma obra literária. É perfeitamente possível entender por que Karl Ove passava suas tardes naquela casa. A vontade é de ficar. Martha e Ola-Jan são pessoas maravilhosas, que eu gostaria que fossem meus avós. Eles são muito maiores do que o livro.

Eles anotam nosso contato e anotam meu nome quando Camilo diz que também sou escritora. Saímos extasiados, Camilo tem planos de voltar quando sua companheira vier visitá-lo no final de sua estada, talvez antes, passar um tempo em Tromøya escrevendo. Eu faria o mesmo se pudesse, se não tivesse meu companheiro e meus filhos me esperando em casa. Sentimos, ambos, o privilégio de um encontro verdadeiro, muito mais que com dois personagens de livro, e fica claro de repente que eu estou buscando uma infância que não é minha, mas que faz sentido como se fosse.

 

25 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Chegamos tarde ontem em Oslo, meu ponto de chegada e partida na Noruega. Tive uma vaga sensação de voltar para casa, já conheço as ruas, foi fácil encontrar o hotel onde ficarei meus dois últimos dias. O vazio das ruas já não me incomodou, pelo contrário. Nos dias de semana, Oslo, a maior cidade da Noruega, tem a movimentação de um domingo em São Paulo, e aos domingos, parece uma cidade fantasma. Aprendi a gostar disso. Optei por caminhar, mesmo que com as malas, mesmo que por quilômetros. Percebi que já gosto muito deste lugar.

O museu dos vikings está fechado para reforma. Num artigo ao New York Times, Karl Ove contou que, quando aprendeu sobre os vikings no nono ano da escola, jamais imaginou que aquilo tinha de fato acontecido, nem mesmo quando viu os navios autênticos no museu. É como se os navios com sua concretude pertencessem ao mundo material, enquanto tudo o que ele lera sobre aquele povo, ao mundo imaterial dos livros e da fantasia. Talvez o projeto dele seja a tentativa de junção desses dois mundos, a ficção e a realidade, o que minha viagem constatou que não acontece. Pois não importa com quanta minúcia ele descreva um parque, uma floresta, um céu, as palavras não conseguem diminuir a distância entre a realidade e o que se prova cada vez mais ficção, talvez só a atestem. A comunhão que a literatura oferece é a incomunicabilidade, a solidão.

Encontro Camilo na porta da sauna, que na verdade é um pequeno barco-plataforma atracado ao fiorde. Da janela do pequeno recinto escaldante, vejo a Ópera de Oslo e os pássaros que a sobrevoam. Dois noruegueses dividem o horário da sauna conosco. Quando o calor fica insuportável, dou meu primeiro mergulho no fiorde. A água é gélida, também insuportável, não aguento mais que alguns segundos, mal consigo respirar. O calor, na volta à sauna, já não dói, é até agradável depois do frio. O próximo mergulho é menos ruim. O seguinte, quase agradável. No último, pulo do andar de cima, nado, me deliciando na água gelada. Não, o último não. Só mais um. E mais um. Mais um. E pronto. Que maravilha nadar aqui, que maravilha o meu corpo aqui, nestas águas de tão longe, mas que faço minhas, que se tornam minhas. Em vários momentos da viagem me assaltou a impressão de absurdo, de não saber o que estava fazendo neste lugar, em busca de uma história que não é minha. Mas que história não é minha, que história chega até mim que não passa também a ser minha? E mesmo que não passasse a ser: seguir um roteiro é só um motivo para viajar. A escolha de uma direção. Assim como Sophie Calle escolheu alguém aleatório para seguir em Veneza, assim como Lauren Elkin vai atrás dos passos de Sophie depois. Eu escolhi alguém na Noruega para seguir.


[1] Há dois outros personagens distintos na série também chamados Geir: o editor de Karl Ove e o seu melhor amigo na idade adulta, que é sueco.

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