ESCRITOR - ITAMAR VIEIRA JUNIOR

E nesta postagem, um pouco da história de ITAMAR VIEIRA JUNIOR, autor vencedor do Jabuti 2020 com Torto Arado, ainda em minha lista de leitura.


O CIENTISTA POETA

Autor do best-seller Torto arado, ITAMAR VIEIRA JUNIOR lança seu segundo romance, Salvar o Fogo, unindo sua atuação como geógrafo ao olhar sensível de escritor e contribuindo para a renovação da cultura brasileira POR Ismael dos Anjos FOTOS Raquel Espírito Santo


Itamar Vieira Junior é pop. Nascido em Salvador (BA) em 1979, é um dos raros autores brasileiros a alcançar o status de best-seller com seu romance de estreia, Torto arado. São mais de 700 mil cópias vendidas desde 2019, versões em 24 países, tendo sido traduzido para o alemão, japonês, inglês, entre outras línguas, e uma série em produção para a HBO. Embora o sucesso seja recente, o encanto pelas letras vem de longe. Itamar começou a rascunhar seus escritos desde cedo. Lembra-se de produzir pequenas fábulas e ficções ainda criança, entre 7 e 8 anos de idade. Seu pai, de quem herda o nome, e sua mãe, Tereza Cristina, chegaram a fazer um cre - diário para dar a ele, aos 11 anos, uma máquina de escrever. Apesar da precocidade e do desejo que transparecia, não parecia factível a hipótese de lançar-se a uma carreira de escritor. Itamar, então, se dedicou aos estudos. Durante a graduação, se tornou o primeiro estudante a ser agraciado com a bolsa Milton Santos, que leva o nome do geógrafo vencedor do prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia. “Eu sempre o chamo de professor Milton. Não tive aula de fato com ele, mas se tornou essa grande referência. Esse projeto de bolsas para estudantes carentes é lindo, e era um sonho dele. Uma coisa muito generosa, importante, muito antes da lei de cotas ou de outras polí - ticas para a manutenção dos estudantes na universidade, ele já guardava esse sonho de poder contribuir de alguma maneira. E esse contato com a obra do professor Milton Santos foi muito profícuo, porque eu pude aprender muita coisa sobre o mundo e sobre a vida”, diz Itamar. Em 2006, ele se tornou servidor público do Incra Insti - tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o interesse pela terra e pelos territórios, que já existia em seu contexto familiar, passou a habitar também o cotidiano profissional. “Minha família materna vive há muito tempo na cidade. Mas meu pai chegou a ser criado até os 15 anos no campo, e meus avós e bisavós têm origem lá. Muitas memórias eram narradas em casa, sobre esse espaço tão vital para a vida de muitas pessoas. Trabalhando no Incra tive um contato ainda mais profundo, mais intenso com essa realidade. Fiquei muito interessado, porque percebi que ali naquele espaço eu podia entender o Brasil. Podia entender as pessoas, podia entender a vida. É um espaço ainda muito marcado pela nossa própria história”, explica. As marcas históricas a que o autor se refere, do passado colonial e escravista do Brasil, também estavam presentes tanto no ambiente acadêmico de Itamar — seu doutorado em estudos étnicos e africanos pela UFBA foi sobre a vida, morada e movimento do povo da comunidade quilombola de Iúna, em Lençóis (BA) —, quanto na vida pessoal do autor. “Eu venho de uma família mestiça, com muitas origens, e acho que faltava a mim mesmo essa possibilidade de me identificar com o mundo. De ser aceito, acolhido, de entender de que país eu faço parte, não é? Qual é a trajetória, história dos meus ancestrais? Porque chegando a isso eu posso pensar, por exemplo, a minha própria história. Em que contexto eu me insiro? Essa foi a minha busca pela terra, pelo meu chão.” POR UMA OUTRA LITERATURA A estreia de Itamar na literatura aconteceu em 2012, aos 32 anos, com o livro de contos Dias, agraciado pelo XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura da Bahia. A grande guinada na carreira literária aconteceu em 2018, também ao se sagrar vencedor de um prêmio — dessa vez o prestigiado LeYa, em Portugal, em que 348 obras originais, provenientes de 13 países, foram avaliadas anonimamente. Além do LeYa, Itamar também foi laureado com os prêmios Jabuti e Oceanos – premiações essas que foram essenciais para que o autor rompesse as barreiras do mercado editorial e, recentemente, aderisse a uma licença não remunerada para experimentar viver de literatura. Vale lembrar que, assim como Itamar, muitos são os exemplos de autores brasileiros que também eram servidores públicos: Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis e Cecília Meirelles. Em um momento em que nunca se discutiu tanto o racis - mo, antirracismo e o colonialismo no Brasil, o que Itamar e outras autoras negras contemporâneas — como Ana Maria Gonçalves, com seu Um defeito de cor, e Eliana Alves Cruz, com Águas de barrela — fazem é retecer, com palavras, a história do povo afrobrasileiro. “O Itamar está dando outro significado ao que antigamente se chamava de literatura regional. E é daí que vem o Itamar cientista social. Ele desloca essa noção de centro e periferia, interior e cidade, porque na verdade o centro é onde você está. Quando ele traz essas histórias com tantas conexões com outros lugares do país, que toca tantas pessoas que não necessariamente vivem aquela realidade, é só mais uma prova de que existem alguns sentimentos que perpassam toda a sociedade brasileira. São obras que buscam uma essência, um DNA Brasil que por muito tempo foi ocultado, silenciado”, afirma Eliana. Mesmo não se enquadrando na categoria de romances históricos, as obras do escritor baiano falam de maneira vívida sobre os traumas impingidos e ainda presentes entre as populações afro indígenas brasileiras, especialmente no Nordeste. “O Itamar escritor, embora escreva literatura, ele não está dissociado do Itamar que pensa, do cientista, do geógrafo, do antropólogo, daquele que se interessa pelas ciências humanas. Não há dois Itamares. Há um Itamar que é esse, que incorporou para sua vida tudo aquilo que ele pode aprender no mundo lá fora. E a literatura inevitavelmente vai carregar tudo isso também”, diz ele. Em Salvar o fogo os temas do direito ao espaço, as questões relacionadas ao racismo e o território subjetivo do encan - tamento são retomados, agora com a adição do papel que a Igreja católica exerceu nesse cenário ao suprimir tradições e impor modos de vida. “Quando não havia uma explicação prática ou científica para muitos temas da vida, sempre se recorria às explicações mágicas do mundo, não é? Isso fez parte da minha vida desde sempre. E depois, trabalhando com camponeses, camponesas, quilombolas pelo interior do país, comecei a perceber que isso está replicado no mundo. Essas crenças populares fazem parte da vida das pessoas, e é indissociável pensar esse lugar, essas pessoas, sem tudo isso. A gente privilegiou alguns saberes em detrimento de outros, mas eu não costumo estabelecer uma hierarquia entre uma coisa e outra. Para mim, todas são formas válidas de ver e observar o mundo”, contextualiza. 


A TRILOGIA DA TERRA Para alguém que se declara cético e tem o repertório técnico de Itamar, chama atenção não apenas a escolha em fazer da fé personagem importante de suas obras (o jarê, prática de matriz africana, é um dos panos de fundo do primeiro livro), como a escolha da ficção como veículo. “Eu acho que ficção é incrível. Meu ceticismo tem mais a ver com o fato de que, talvez, a religiosidade na minha vida não tenha tanto espaço como eu gostaria que tivesse, como eu vejo na vida de outras pessoas”, conta. “Aí eu fui moldando isso de outra maneira. Eu digo que tenho fé na literatura, porque a literatura alarga o nosso horizonte, o nosso mundo. A ficção  entra como uma arma poderosa, porque ela nos restitui a possibilidade de existir. Ela recria mundos.” Em seu segundo romance, inclusive, a narrativa imaginada por Itamar se inspira também no trabalho real de outros artistas, como Glicéria Tupinambá. Liderança de seu povo em Serra do Padeiro, no sul da Bahia, Glicéria foi a primeira a recriar o Manto Tupinambá, após 400 anos de apagamento. Até o ano de 2006, quando a mestranda e pesquisadora em antropologia no Museu Nacional confeccionou seu primeiro assojaba Tupinambá, os 11 mantos de que se tinha notícia estavam todos na Europa, terra dos colonizadores. “Eu acho que a literatura, a escrita, todas essas ferramen - tas, vêm fortalecer o não apagamento do nosso patrimônio Tupinambá”, afirma Glicéria. Apesar de ser uma das três pessoas a quem Itamar direciona os agradecimentos de Salvar o fogo, ela só descobriu a dedicatória ao ler a obra. “A gente ainda não se conhece pessoalmente, mas falei para ele que o livro tinha um feitiço. Quando eu pego um livro para ler, começo pelo final. Pois esse foi primeiro que comecei do início e fui até o final”, diz. “Quando cheguei ao fim do livro, tomei aquele choque. Foi muita surpresa ver meu nome ali e entender que meu trabalho inspirou o trabalho dele. Tem atravessamentos muito importantes que tratam desse território, e também estão atravessados nas pessoas.” Há uma fagulha, uma vontade de dividir valores, sentimen - tos e histórias que permeiam Itamar e transpassam sua obra. Ele rememora que ao iniciar o processo de Torto arado, não havia pensado em escrever uma continuação, mas terminou o livro sabendo que ainda não tinha tudo o que gostaria de dizer. Dessa vez, ele já anunciou que Salvar o fogo é a segunda produção de uma trilogia dedicada ao tema da desigualdade evidenciada pela questão da terra e dos territórios — talvez o direito mais básico e elementar de qualquer ser humano. “Essa epopeia ainda não acabou, e dificilmente acabará. Mas eu vou ter que pôr um fim neste ciclo, embora ainda não tenha chegado o momento. Eu sinto que a história prossegue, continua. Há o êxodo das pessoas, primeiro pela diáspora, de - pois porque o Brasil passou por um processo de urbanização tardia, muito forte e muito recente. Na cidade, nós estamos cercados de pessoas que são herdeiros desta vida. Que não puderam continuar no campo porque não havia lugar, não havia espaço, não havia interesse. Então ainda preciso falar sobre essas pessoas, que foram parar na cidade. Deserdados, desterrados.” Uma vez que a tendência natural da sociedade é celebrar aquilo que é consagrado, o que também acontece nas artes, sigamos com fé em Itamar.  


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