Vó Valéria morreu


           Vó Valéria morreu. Na certidão de óbito está escrito morte súbita, mas foi devagarinho que ela se foi. Chegou o tempo de folga natalino. Seria uma época de visitá-la, mesmo eu, que estava sendo relapsa nisso. Provavelmente teria sido nesse fim de semana. Ou talvez no próximo, mas, com certeza, não na ceia. Mas no velório estávamos todos lá. Seis horas conversando amenidades, meu pai dizendo que estava feliz, mas escondendo(-se de) suas emoções de modo irritante como sempre. Parecendo não ligar. Uma vez minha vó disse sobre o filho do meu pai que morreu, ela me disse que diariamente se lembrava dele. Disse isso enquanto pegava um talher na gaveta, e eu pensei que nem era possível tanta regularidade. Mais uma das coisas das quais só se entende quando vive: penso na minha vó diariamente. Não dá vontade de chorar todas as vezes. Me lembro de uma professora de português. Nossa relação era assim: eu não gostava dela de manhã, nas aulas regulares, ela tinha um sapato feio da moda, e dentes incisivos separados. Mas nas aulas extras de redação, todas as sextas, das 13h às 15h, ela era maravilhosa. Numa das tardes, ela disse sobre a relação que tinha com a mãe. Pelo que me lembro, ela era a caçula e a mãe nunca a cuidou, já estava velha, cansada e cheia de outros filhos que cuidaram da caçula. Ao fim da vida, a velha tinha os pés podres de diabetes. Minha prof. disse que retomou o contato com a mãe durante os cuidados senis: punha creme em seus pés e massageava-os por horas, parece até que conseguiu torná-los menos pretos. Desse jeitinho, antes de morrer as duas se desculparam e se perdoaram. Morreu e deixou morrer sem arrependimentos. Quando descrevi minha vó acamada para minha psico eu retomei o filme “Corra!”: minha vó parece estar presa e não consigo lê-la pelos olhos, são distantes, ela está atrás deles e não se mostra, está presa. No velório, quando eu disse que vó Valéria foi ficando cada vez menos responsiva, meu pai disse que mesmo antes disso víamos mais do que ela mesmo demonstrava. Achei um desrespeito à minha memória, mesmo que medicamente seja verdade. Sinto que perco o rumo da respiração quando lembro dela. Acho que cada livro histórico vou pensar nela, se ela leu ou gostaria de ler. Para mim, São Paulo é sinônimo de Vó Valéria. É por isso que a gente tem que ter filho mais jovem, para que quando eles tenham maturidade para entender o valor dos avós, ainda tenham tempo de conviver com eles.

Valéria Pennacchi Alfino, filha de Dino e Lília, nascida aos 19/07/1935, óbito em 24/11/2020, católica diária, 36 extrema-unções, cinco filhos – vamos ver se os outros quatro concordam. Dois colares de swarovski sem informação da destinação, orelhas não furadas. Voz delicada, histórias divertidas, medo nenhum de casas mal assombradas. Jeitosa com plantas, casa, cães, comida e netos. Lia enquanto almoçava, antes de dormir e nas horas vagas. Diabetes tipo 2, Alzheimer, infecção urinária crônica. Morreu longe de casa, do marido e de si mesma. Sinto sua falta.



Sinop, 20/12/2020


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