CHILE



Passamos cerca de dez dias no Chile na virada do ano de 2019/2020. Foi uma viagem diferente das demais. Fui esperando reviver os dia de Montevideo e Buenos Aires, mas encontramos um país com arquitetura bem menos bonita, museus mais simplórios e numa crise constitucional. 


Provavelmente vejo uma crise constitucional de maneira diferente que alguém que não estude direito. Além disso a minha consternação veio após a leitura contemporânea dos livros "O Conto da Aia" e "Vox", ambos distopias em que as mulheres perderam os direitos até viverem em condições subumanas ou de submissão.  "Submissão" também é uma obra que serviu para me revelar como podemos chegar a um estado de direitos tolhidos. 

Acompanhávamos as notícias de que o Chile estava "pegando fogo", pessoas ficando cegas de bala de borracha e morrendo em protestos que pugnavam pela diminuição do preço da passagem de ônibus e aumentos das pensões e aposentadorias concedidas abaixo do salário mínimo. Quando a situação se amenizou compramos as passagens. Razoavelmente baratas.

Dia 26/12, estávamos tomando cerveja em um bar chamado "Chinchinero", sentados em cadeiras de jardim no gramado em frente ao bar, conversando à vista do Parque Quinta Normal, ao lado do Museu Nacional de Belas Artes, a curvatura da Terra permitia que escurecesse as 21h, mas perto das 20h passou o primeiro carro forte jorrando água para dispersar eventuais manifestantes. 

As garçonetes do bar gritaram para que entrássemos - deviam estar cansados de clientes que saíram sem pagar - e fomos direcionados para sentar na ala das crianças, decoradas com potes de picles gigantes decorados com cabeça de palhaço. O janelão nos permitia ver o a rota circular dos encouraçados já não tão verdes militar, mas pintados de várias cores a gosto dos manifestantes.
 
Eu havia me perdido do Marcelo, estava em choque sem estar com medo do que acontecia. A rotina chilena não chegava ao Brasil. O cozinheiro do bar me disse que isso acontecia todos os dias, o movimento havia diminuído em muito e uma das filiais havia fechado.

Nesse mesmo dia fomos a outro bar no encontro do pessoal do Couching Surfing e eles nos expuseram que as manifestações aconteciam com frequência, mas a repressão acontecia mais ainda. De modo, inclusive, antecipado, como havíamos provado mais cedo. 

No dia seguinte fomos a uma manifestação e provamos do gás lacrimogêneo e de como um encouraçado parado dá mais medo do que um guanaco andando. Dias depois, em Valparaíso conhecemos um rapaz que participava da linha de frente. Soubemos que o país não vendia mais máscaras (que podiam proteger do gás) e entendi o que a placa da loja vegana significava.  Dizia: "Temos água, bicarbonato de sódio e limão para quem pedir". É um composto neutralizante do gás.

As manifestações devem ter cessado no Chile, afinal a atual crise do COVID-19 pede que não nos aglomeremos. 

Espero que nesse meio tempo o Estado não tenha se apropriado de direitos já conquistados pela população. O Chile tem uma história muito dolorosa da ditadura militar, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos é um reconto das vítimas muito sensível e válido sobre o que se evitar.

E como evitar atrocidades? Evitando a retirada de pequenos direitos. 

E como lutar por pequenos direitos? Com manifestações, mesmo que elas lhe pareçam desproporcionais.



obs: A garçonete do Chinchinero perguntou se ficaríamos mais, se desejávamos papas fritas, dissemos que já iríamos embora - íamos para o encontro do Couching Surfing - e no caminho compramos empanadas muito boas de aceituna negra de uma cara que parecia vender drogas também.

Sinop, 24/05/2020

#Marcelo #Países #Chile #Livros #memórias #2020

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