Os irmãos da minha vó Rosa

Tio Lelo é o irmão preferido da minha vó Rosa. Não por acaso, ele também se afeiçoou com a turma dos Cacefo e casou com a tia Carola, que é irmã do vô Catonho. Minha vó teve cinco irmãs e três irmãos: Tida, Aparecida; Dude, Lurdes; Dila, Odila; Santa, Santina; Lelo, Aurélio; e Daíno.

Agora tio Lelo está muito gordo e com problemas nos rins. Para não sobrecarregá-los, o médico proibiu que comesse carne. Tia Carola, comprida e quase sem doenças igual ao irmão Catonho é quem faz o almoço, o que para mim, aos oitenta anos de idade, deve ser considerada uma tortura autoinfligida. E, em obediência à prescrição médica prepara arroz, feijão e linguiça.

Tia Tida era a mais velha e foi a primeira a morrer, tinha problemas nos rins também. Mas no caso dela, desde moça, tanto que as filhas herdaram essa predisposição.

Tia Dila era a mais nova e foi a segunda a falecer. Ela nasceu no mesmo dia que eu, dividimos  muitos bolos de aniversário. Ela teve uma coisa, algo como aneurisma enquanto fazia bolachas com as sobrinhas (esposas dos filhos da Santa, Tica e Zizi) e depois de um mês internada morreu sem dar tchau para ninguém. O nome dela foi homenagem ao médico que vinha no sítio atender em domicílio a cavalo.

Tia Dila e tio Daíno foram os dois filhos que mais se machucaram num acidente com um caminhão de pedras – me lembro de ser pequena e ter vontade de escrever, mas como não sabia o quê, recontava as histórias que eu ouvia, e essa foi uma delas. Hoje tenho mais criatividade para escrever histórias inéditas, mas gosto mesmo das reais.

Tio Daíno e tia Dila entre outros familiares estavam num ônibus que quebrou perto da ponte. Estavam do lado de fora esperando o conserto. Foi quando um caminhão de pedras, sem freio veio e a toda velocidade descendo do morro e atropelou as pessoas. O motorista que estava consertando o ônibus morreu, tia Dila teve foi amassada e carregou por toda vida uns “buracos na perna”, onde as pedras arrancaram a carne. Tio Daíno ficou quarenta e duas horas desacordado e a mãe (nona Nica) prometeu que se ele voltasse vivo ela enviaria o filho ao seminário para ser padre.

Tio Daíno acordou e o médico disse que ele não poderia mais trabalhar no sol. Mesmo sem a promessa, de que adiantaria um filho no sítio que não poderia trabalhar no sol? E que provavelmente não poderia fazer esforço também? Ele foi mesmo enviado ao seminário, fugiu, mas continuou os estudos e foi o único graduado da fraternidade. Ironicamente, o mais chato também.

Tia Dude é engraçada. Dude e Tida são as mais velhas e tiveram o pai mais bravo também. Ele não deixava ir a baile nem passar maquiagem. Vó Rosa conta que tia Tida, das poucas vezes que podia sair, passava atrás da roseira selvagem e punha o batom vermelho. Ambas as filhas, por serem muito resguardadas pelo pai, casaram-se com “camaradas”, que eram funcionários da propriedade. 

Tia Tida deu azar porque o marido era preguiçoso, chegou a passar fome num sítio distante mal cuidado. Até que foram para cidade, as mulheres arranjaram seus empregos e o Tião (marido) vinha trabalhar no Mato Grosso por temporada. Voltava sem dinheiro, gastava com não sei o quê. Depois arranjou trabalho numa fábrica de sabão e o sogro se preocupava: “O Tião, do jeito que é, vai cair no tacho quente”, a profecia não se realizou, lá ele se aposentou.

Tia Dude deu azar, não porque o marido era avoado, mas adoentado. Ele caiu de uma construção e nunca recuperou-se bem das feridas. Bateu a cabeça e a bacia, passou dois anos no hospital da primeira vez e depois houve muitas idas e vindas. Tia Dude pegava dois ônibus para ir e dois para voltar, levava sopa de mocotó para ele se fortalecer. Precisou usar sonda de alimentação por um tempo e lhe retiraram um dente para passar o caninho.

Tia Dude é engraçada mas sofrida, sua vida foi permeada por mortes. A primeira filha, Júlia, morreu com problema dos rins. Sobrou-se então de filha a Lila, que tinha um marido muito bom, o Jaime. Ambos morreram de câncer, primeiro ele, depois ela. Quando a Lila descobriu o câncer no intestino logo falou para as primas (filhas do tio Lelo): “não quero usar aquela bolsinha” (de colostomia). Não foi necessário.

Tia Santa é impressionantemente a cara da minha vó, parecem gêmeas, com o detalhe de que a Santa tinha fama de mentirosa. Ela também casou-se com um camarada. Ele não era fiel, saía de madrugadinha com o jipe dizendo que passaria no Cardoso antes de ir para feira vender os produtos agrícolas. Ia mais tarde, a pé, tia Santa, encontrá-lo na feira. Com recorrência pedia que tia Santa depenasse um frango para o Cardoso ou lhe preparasse um queijo. No fim da vida ele amputou uma das pernas, e Cardoso lhe foi solidário.

Por fim tio Mário, casado com a costureira de mão cheia Marica (Maria). Tiveram três filhos, um deles extremamente estelionatário, os demais um pouco menos. Tia Marica morreu de câncer e logo depois, tia Dila – que morava no mesmo terreno e viviam juntos – então, tio Mário se viu solitário, diz para si mesmo e para os outros: “quem tem uma filha mulher está no céu” e “nenhum dos meus filhos me liga ou visita”. Ele diz também que o feijão da Carola é seco e que tia Santa foi abandonada pelos filhos (ela mora sozinha em SP e tem 3 empregadas). Tio Mário é um tremendo linguarudo. 

Sinop, 17/07/2021




Le Rappel des glaneuses, em português: O chamado das colhedoras, Jules Breton, 1859


#vóRosa #avós



Comentários

  1. Tia Santa chamava-se Issantina e morreu em 2023 com problemas nos rins. Ela tinha fama de mentirosa, tanto que mentiu até o seu dia de nascimento: o original era dia 02/04 (dia seguinte ao dia internacional da mentira), mas ela passou a dizer que era em outubro e não aceitava os parabéns e outra data. Provavelmente ela adotou a data do registro tardio, ao invés da minha avó, que adota a data verdadeira.

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